Flamenco é mais que a “cena”. É processo!

Ainda permeada pelos eventos do Projeto Tablas da Casa em Si e pelas trocas imensamente generosas com alunos, professores e artistas, trago este artigo pontuando o que está entre aquilo que as pessoas veem e aquilo que acredito que os flamencos poderiam viver e experimentar.

No artigo anterior, falo um pouco da arte flamenca como uma arte possível para todos que desejam aprendê-la como uma linguagem específica e quase como uma continuação, me embrenharei um pouco mais nos pensamentos sobre a utilização do flamenco “em si” para quem aprende e para quem já sabe, insistindo (como sempre) no viés na comunicação.

Talvez, algumas danças tenham em vista o condicionamento físico, outras a mera diversão ou o sonho da apresentação para uma plateia, mas o flamenco, em sua natureza, vai muito além disso, pois é sobre a vida, sobre seu momento, sobre essência, sobre o que você sente em determinado momento.

Se tratamos o flamenco como uma linguagem estamos falando de certos ambientes onde a troca ao vivo acontece, mas também é natural visualizá-la na “cena montada” dos ambientes mais teatrais, onde o diálogo passa a ter boa parte das suas falas marcadas (o que chamamos de convenções) deixando a linguagem impressa principalmente na própria montagem.

Para além da “Cena”, do estético e do coreográfico, flamenco como arte é principalmente uma forma de se comunicar, de perceber e ser percebido pelo outro, com mais ou menos profundidade, de acordo com o conhecimento da linguagem.

Fora do cenário e dos ambientes de apresentação, o flamenco existe. O antes e o depois das aulas, a juerga, o happy hour, os encontros… são nesses momentos onde a interação flamenca se torna mais apaixonante e desejada:

“- Canta um pouquinho! “

“- Faz a palma para eu te mostrar uma coisa! “

“– Ouve esta falseta! “

“– Olha este remate! “

“– Já ouviu esta letra? “

Tudo isso se trata de um acesso interno pautado no momento presente e no diálogo com o outro(s).

Mas, o que sabemos sobre a nossa própria voz? Até que ponto somos capazes de manter nossa voz estando com nosso canal de recepção aberto à voz do outro? É possível repensar sobre a nossa capacidade de escuta e de diálogo?

É difícil não parecer fora da realidade ao falar de uma arte com comunicação, ferramentas de ação, escuta e respeito ao processo contínuo, num mundo contemporâneo que se estabelece com milhares de problemáticas da individualidade na relação com o outro, com o marketing vicioso que oferece “aprenda o que deseja em 5 dias” ou “aprenda estrutura de baile sem convivência entre a dança e a música”, sem falar da felicidade digital efêmera que relaciona a exibição como prova de vida e sucesso.

Neste imediatismo, quem entra numa aula esperando saber se frustra e não aprende, pois invisibiliza o papel do professor, além de não estar no seu papel de aluno. Por outro lado, quem entra numa aula e sabe tudo, se encontra num lugar tão confortável que talvez não se questione porque estuda, aonde pouco ou nada, tem a lhe acrescentar.

Desde o momento onde nos tornamos conscientes do “não saber” se estabelece um caminho para o saber. Antes disso é impossível.

Flamenco é pura linguagem e, portanto, é comunicação! Assim sendo, o flamenco está no cotidiano do encontro e somente pode fazer parte da nossa realidade se compreendermos como linguagem.

Para chegar neste flamenco que descrevo é necessário entender primeiramente que o flamenco vai “muito além da cena”, da quantidade de coreografias aprendidas. Fazer flamenco não é apenas apresenta-lo, é viver esta arte na vida, em cada momento em que ela te serve como um instrumento para a sua expressão.

Desenvolver-se no flamenco deve produzir uma descoberta interna, uma evolução intensa e, mais do que isso, exercita o respeito pelo PROCESSO DE APRENDIZADO E INTERAÇÃO CONSTANTES, num mundo onde tudo tende a se tornar apenas um produto final pronto, rápido e descartável.

Quem compreende e respeita o processo, todo dia sai diferente, mais instrumentados, mais dono do seu saber, mais inquieto, aberto aos encontros e mais certo de que há um mundo interno por desbravar e um mundo externo por conhecer. Nestes casos, fazer flamenco pode chegar a ser um refinamento diário pessoal e social através da arte.

Quais os benefícios da dança flamenca

A dança flamenca é uma arte rica e expressiva que possui diversos benefícios físicos, emocionais e sociais para aqueles que a praticam. Aqui estão alguns dos principais benefícios da dança flamenca:

  1. Condicionamento físico: a dança flamenca é uma atividade aeróbica que envolve movimentos vigorosos e ágeis, o que ajuda a melhorar o condicionamento cardiovascular, a força muscular e a flexibilidade.
  2. Coordenação e equilíbrio: a complexidade dos passos e movimentos na dança flamenca exige uma boa coordenação entre os pés, as mãos e o corpo. A prática constante ajuda a melhorar a coordenação e o equilíbrio.
  3. Expressão emocional: o flamenco é uma dança altamente emocional e expressiva, permitindo que quem a pratica trabalhe também a  liberação de suas emoções e sentimentos através dos movimentos em si.
  4. Autoconfiança: aprender a dança flamenca envolve entender uma série de códigos que permeiam o baile, o cante e o palo, sendo que o estudo com base nesta construção metodológica, teórica e prática  ajuda a  aumentar a autoconfiança e a autoestima  de quem está estudando e praticando.
  5. Melhoria da postura: uma das características da dança flamenca é a necessidade uma postura ereta, o que pode ajudar a melhorar a postura geral dos praticantes.
  6. Fortalecimento das pernas e abdômen: ao longo da prática da dança flamenca, é possível observar um maior fortalecimento dos músculos das pernas e do abdômen.
  7. Consciência corporal: através da prática da dança flamenca, os dançarinos desenvolvem uma maior consciência do próprio corpo e dos movimentos que são capazes de realizar.
  8. Alívio do estresse: assim como qualquer forma de dança, o flamenco pode ser uma ótima maneira de reduzir o estresse e a ansiedade, proporcionando uma sensação de bem-estar e descontração.
  9. Socialização: participar de aulas de dança flamenca pode levar a conhecer novas pessoas e criar laços sociais, o que é benéfico para a saúde mental e emocional.
  10. Preservação cultural:  a dança flamenca é uma parte importante da cultura espanhola, e sua prática contribui para a preservação dessa forma de arte tradicional.

É importante lembrar que os benefícios da dança flamenca podem variar de pessoa para pessoa e dependem da dedicação, regularidade e intensidade da prática.

Se você estiver interessado em experimentar a dança flamenca, confira a grade de aulas de flamenco da Casa em Si e entre em contato conosco através do WhatsApp: (11) 98466-4866.

Flamenco – Linguagem Secreta ou idioma possível?

A coreografia flamenca está feita através da linguagem para uma apresentação, geralmente em grupo, porém, quanto da linguagem conhecemos e dispomos através dela, para utilizá-la individualmente em contextos de diálogo ao vivo pertinentes ao flamenco?

Muito inspirada pela Mini Maratona e Festa Granaína e, sobretudo, pelo papo no “AFTER” (depois) com alguns envolvidos, com trocas muito interessantes, resolvi trazer uma parte muito rica da conversa onde surge uma expressão muito interessante: LINGUAGEM SECRETA.

Essa expressão me pareceu traduzir essa terrível sensação, recorrente nos estudantes, de que o flamenco é inalcançável e para poucos, apesar da consciência de que ele está presente em todas as partes do mundo e é feito por amadores, profissionais e artistas de várias nacionalidades.

No corpo, um aquecimento, alguns exercícios técnicos necessários e lá vamos nós para o bom e velho aprendizado de coreografias. Na música, o aprendizado de um tema ou canção. Objetivo: treinar para uma apresentação.

Talvez esse processo seja muito eficiente nas outras danças e músicas, incluindo este flamenco para apresentação, mas ao pontuar singelamente uma característica intrínseca do flamenco que é a comunicação ao vivo entre a dança, a música e o ritmo, como acreditar que a cópia e memorização de passos, sequência de acordes ou letra poderia ser minimamente suficiente para que uma conversa se estabeleça?

Salvo o nível de conhecimento imposto pelo contato com o flamenco, como nos alunos iniciantes, poderia a qualidade do flamenco consistir em quantidade de material?

Muitos flamencos já bailaram vários palos, por exemplo, mas quando estamos numa festa e começamos a nos divertir, estes mesmos flamencos não bailam, não “palmeiam”(ato de tocar as palmas como um instrumento) e não tocam (outros instrumentos, ou seja, não participam) porque nunca palmearam para a música, porque nunca interagiram com o baile de outra pessoa, porque a letra para bailar não é a que eles sabem ou porque algo está diferente do que ele aprendeu.

É neste ponto da conversa que se estabelece uma espécie de consciência sobre uma realidade que divide aqueles que dominam aquilo que parece ser a linguagem secreta do flamenco (e que, por isso, podem usufruir dele para além da apresentação) e aqueles que não dominam esta linguagem e se tornam automaticamente espectadores nestas outras situações, pela ausência de ferramentas de interação e compreensão.

É neste momento que entendemos que, apesar da mudança atual que oferece em muitos lugares aulas de estrutura, palmas e improviso, musicalidade, etc., não é só uma questão de anunciar o flamenco como linguagem, senão de tratá-lo realmente como linguagem e concretizar esta realidade no outro.

A linguagem não está na plástica, na beleza estética ou na velocidade. Já diria Camarón de la Isla em sua celebre frase, que diz: “no Flamenco não há mais que uma escola: transmitir ou não transmitir.” Se você buscar a tradução de transmitir do espanhol para o português rapidamente no google, terá como resultado: comunicar. Mas como comunicar algo apenas a partir de um registro do corpo, sem considerar que os outros elementos (guitarra, cante, palmas, cajón) estarão interagindo ao vivo e devem entender o que estou comunicando, além de poderem influenciar mudanças, nuances e quebras deste registro corporal?

Do meu ponto de vista, o flamenco não é uma linguagem secreta e é possível aprendê-lo como um idioma. Talvez por acreditar nisso naturalmente a tantos anos eu tenha desenvolvido o método coreológico flamenco buscando trazer o que se considera intuitivo para um lugar concreto e possível.

E assim, com muita inquietude depois daquela conversa, quis estender o convite a reflexão de que aprender uma linguagem não se trata de “Aprenda mil palavras (passos ou músicas) em um dia!”, e sim de ter um repertório para estabelecer uma conversa com qualquer pessoa que a conheça.

Deixo aqui minha gratidão às pessoas que trocam comigo para além das aulas e eventos e deixo registrado com muito carinho neste artigo um agradecimento especial para uma querida aluna “bailante e pensante” (Claudia), que suscitou o brilhante paralelo do flamenco como linguagem secreta que me inspirou a escrever.

Flamenco – Realize o sonho em 2023

Existem muitos motivos que levam as pessoas a buscar o flamenco como atividade. Entre tantos motivos, três deles se destacam, estando sempre presentes ou sendo o elemento fundamental para essa escolha .

A ancestralidade espanhola

É tão comum ver esta procura ligada a ancestralidade espanhola na escolha do flamenco, como

a força flamenca

é muito comum a busca da “força” flamenca como identificação pessoal ou busca interna.

experiência pessoal

Em maioria, os alunos começam muito dispostos mas, ao constatar que esta arte é muito rica e exigente por ser uma linguagem, interrompem as aulas ao esbarrar nas dificuldades. Em geral, quem permanece são aqueles que se entregam à realização de um sonho, superam seus limites individuais, se apaixonam mais profundamente e vivem “palo a palo” o seu próprio crescimento.

FLAMENCO DE HOJE

Quem vê flamenco hoje não imagina o quanto este gênero mudou plasticamente e sonoramente para se consolidar com o formato atual. O baile flamenco necessita dos músicos para se consolidar como arte flamenca. Podemos dizer que houve uma espécie de revolução no acompanhamento ao baile e na concepção coreográfica deste nos últimos 30 anos. Paco de Lucia, maior expoente da guitarra flamenca e deste gênero musical de todos os tempos, já revolucionava com seu sexteto nos anos 80 e 90, com arranjos elaborados e repletos de convenções, arremates e frases rítmicas virtuosísticas, em conjunto com seu irmão Ramón de Algeciras na segunda guitarra, Rubem Dantas na percussão, Jorge Pardo na flauta, Carles Benavent no baixo e Pepe de Lucía, também irmão, no cante. Ao ouvir “Solo quiero caminhar”, para citar um exemplo, fica claro o quanto influenciaria outros músicos e bailaores/as(coreógrafos/as) nas composições e arranjos feitos para espetáculos de dança flamenca.

No baile, Antonio Canales, Eva La Yerbabuena, Sara Baras, Israel Galván, Joaquin Grilo (que também fez parte do sexteto de Paco) e Joaquin Cortés, entre outros, fizeram parte desta modernização na dança, tanto através de incorporações de outras linguagens corporais, teatrais e cênicas, quanto da música como sendo mais um elemento protagonista em cena. Convencionar com os músicos seus bailes se tornaria rotina, elevando o nível artístico das apresentações, através de muitos ensaios que propiciaram que a música estivesse sempre completamente atrelada ao movimento do corpo e percussão dos pés. Diferentemente do conceito de tablado, onde não há tempo para esta elaboração e a comunicação se dá diretamente através das estruturas de baile e códigos, nas montagens de espetáculos teatrais é possível combinar e marcar com os músicos cada detalhe, tornando mais complexo e rico tanto o baile quanto a música. Yerbabuena e suas montagens com seu marido e diretor musical, Paco Jarana, são uma fonte riquíssima da evolução flamenca no diálogo entre baile e música. Galván deslumbra com seu vanguardismo e ousadia.

 Joaquín Cortés, por exemplo, trouxe para o Brasil em 1.997 o espetáculo Pasión Gitana, descrito pelo caderno de cultura “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, como “um show de dança flamenca que mistura técnicas do balé clássico, do jazz e da dança moderna”. Era considerado o bailarino espanhol de maior projeção internacional. Ainda segundo o próprio jornal naquele ano: “atualmente, diversos grupos de artistas espanhóis se inspiram em Cortés para produzir espetáculos de dança cigana fora dos padrões convencionais.” Era chamado de “flamenco fusion”, mas é interessante notar que  o artigo fala em dança cigana, atrelando o gênero ainda a estereótipos e folclore, sendo que na realidade é uma arte em constante evolução e mudanças de concepção, haja visto como se fazia antes e como se faz hoje. Cortés conseguiu de fato fazer uma espetacularização do flamenco, com uma produção autêntica de shows de rock, figurino de Giorgio Armani, uma companhia homogeneizada de 13 bailarinas com figuras esbeltas para uma determinada finalidade plástica em cena, e uma banda de 17 músicos, que exerciam suas funções com absoluta precisão cirúrgica nas convenções, quase tocando como se fosse uma trilha já pronta ´para ser executada. No entanto, mesmo com toda essa produção, é necessário ressaltar que quem arrancava mais aplausos e levantava o público era o seu tio, Cristóbal Reyes, que dançava um solo tradicional, por assim dizer.

Cada artista citado mereceria um artigo novo, e tem seu papel fundamental nesta nova concepção que surgia de se fazer flamenco. Mas o quê os unia além da necessidade de inovar e buscar seu próprio flamenco? A formação. Todos tiveram a formação “clássica” flamenca, passando pelas técnicas de pés e de corpo, dominando-as por completo antes de se embrenharem pela inovação através tanto de outras linguagens corporais quanto musicais. Todos bailaram muitos anos em “tablaos”. Todos podem ser vistos em vídeos mais antigos onde bailam com a forma tradicional de colocação corporal, executando de forma primorosa em limpeza e velocidade, fraseados rítmicos muito menos complexos do que fariam depois, mas que serviria posteriormente de referência para sapateados muito mais ricos e elaborados musicalmente. A comprovação da importância desta base sólida de técnica e conhecimentos de estruturas de baile e música, assim como seus códigos de comunicação, está justamente na transformação pela qual passaram, e que só poderia ocorrer em etapas. Não é possível, portanto, fazer o moderno sem conhecer e se aprofundar na tradição. Uma é consequência da evolução da outra, que só ocorre porque há além de artistas com suas inquietações, estes mesmos que outrora foram estudantes e alunos dedicados, e não deslumbrados. Portanto, seguimos como estudantes sempre, pois não há limites na busca de nossa própria identidade artística, que será tão mais rica quanto mais completa for.

A GUITARRA FLAMENCA E SUAS FACETAS

Quando falamos de guitarra flamenca, a primeira referência musical que nos vem a cabeça é Paco de Lucia, nome artístico de Francisco Gustavo Sánchez Gomes, nascido em 1.947 em Algeciras, sul da Espanha, em Andalucía, berço do flamenco. Falecido em 2014, deixou extenso legado à música. Graças a sua projeção internacional, de talento reconhecido desde os 11 anos de idade, Paco de Lucia elevou o instrumento chamado no Brasil de violão, a um patamar de altíssimo nível, influenciando o mundo inteiro, provocando a proliferação e projeção de artistas de altíssimo nível e alta performance. Depois de Paco, os violonistas flamencos, chamados de guitarristas flamencos na Espanha, nunca mais seriam vistos como músicos comuns, mas sim como extraordinários, devido a alta complexidade de execução e especialização que esta arte requer. O que poucos sabem ao iniciar seus estudos, é que dentro deste Universo existem três especializações possíveis, conhecidos como: guitarra concierto, guitarra para cante e guitarra para baile. Além, é claro, da especialização no ensino da mesma.

 O guitarrista de concierto é aquele que se dedica exclusivamente a sua carreira como solista. Para isso, precisa dedicar horas e horas de estudo diário tanto para o aperfeiçoamento e manutenção de sua técnica, quanto para a composição própria de suas músicas e produção de discos. Muitas vezes pode participar de concursos de guitarra flamenca, disputando prêmios, assim como realizar seus próprios shows, que podem ser acompanhados de outros músicos ou não. Com certeza é o trabalho mais solitário entre as três categorias, pois exige que o músico passe um tempo considerável em companhia apenas de sua guitarra. As técnicas específicas deste estilo possuem nome próprio em espanhol: razgueos, alzapuas, técnica de pulgar, tremolos, picados duros e picados al aire(punteo), devem ser executadas com limpeza, destreza, velocidade e precisão. Paco, que foi um maestro e gênio nesta área, se queixava que tocar o violão era muito difícil, mas ao mesmo tempo sua maior paixão. A agilidade com o instrumento e a capacidade do controle emocional e psicológico, que comprovam o domínio sobre o mesmo, aliados à criatividade, musicalidade e capacidade expressiva do artista, vão ser fundamentais para que este se destaque entre tantos outros que se dedicam ao mesmo ofício.

Já na guitarra para cante, os principais atributos serão outros. Acompanhar ao cante, no flamenco, significa tocar para o/a cantor/a, chamado de cantaor ou cantaora. Existem “salas de cante” na Espanha onde é possível sentar, tomar “uma copa”(uma bebida) e assistir a uma apresentação onde o guitarrista presente acompanha tanto a profissionais quanto amadores nesta arte. Para tanto, é necessário um profundo conhecimento dos estilos de cante, chamados de palos, assim como a capacidade de tocar em diversos tons, pois cada cantaor/ora terá sua preferência de tonalidade, assim como cada palo possui uma harmonização(quando colocamos os acordes na melodia cantada) específica, com regras muito rígidas e marcantes. Na maioria das vezes o guitarrista fará uso de um artefato chamado na Espanha de cejilla(no Brasil de capotraste), que se prende em uma das casas do braço do violão a fim de se adequar ao tom de quem canta. Em outros casos, o músico fará uma transposição de acordes, o que exige mais conhecimentos musicais. Os “toques” para cante podem variar muito em andamento, e exigem uma destreza do guitarrista para saber exatamente quando, como e onde deve tanto mudar de acordes, quanto subir ou baixar a velocidade da música, assim como saber quando arrematar(finalizar) corretamente a fim de não “atravessar” quem canta. Em resumo, o guitarrista tem como objetivo estabelecer uma diálogo coerente e rico com o cante, assim como ponderado, pois o destaque nessa arte se dá sempre a quem canta.

 Em uma apresentação de dança flamenca, é fundamental que tenhamos os 3 elementos que compõe esta manifestação artística: “cante, baile y toque”. Canto, dança e violão. A guitarra para baile vem a ser então uma síntese deste ofício, já que em diversos momentos o guitarrista tem a oportunidade de mostrar suas micro-composições através de falsetas(parte instrumental do baile, segundo o Método Coreológico Cylla Alonso), sua destreza e conhecimento dos palos acompanhando ao cante, e seu domínio rítmico da linguagem ao dialogar com o baile(a dança). Neste caso, o guitarrista precisa tanto estar com as devidas técnicas de “toque” em dia, quanto ter a capacidade de “ler” o que o bailaor ou bailaora estão comunicando através do corpo, assim como ser capaz de ouvir ao cante e acompanhar com os devidos acordes e o devido compasso. Deve conhecer os códigos de baile(chamadas, arremates , respiros, cierres) e as estruturas de baile possíveis para cada palo. Deve compreender as frases rítmicas dos pés, assim como saber trabalhar com estas frases em justaposição ou contraposição.  Mas deve acima de tudo, além de todo este conhecimento, ter a sensibilidade de atuar como mais um integrante da banda, e que tem como principal função fornecer um suporte sólido, porém maleável, a todos que estão atuando, servindo de referência a quem dança, que é quem realmente comanda a banda como um maestro, a quem canta e a quem faz as palmas e/ou toca o cajón. Esta sensibilidade, aliada ao conhecimento de seu ofício,  farão toda a diferença no final, para que se comprove a capacidade com que o músico acompanha e interpreta cada elemento deste quadro.

 E por fim, mas não menos importante, está o ofício de quem ensina esta arte. Ser um guitarrista habilidoso não torna ninguém um professor competente. È preciso método, visão, capacidade de empatia, muita psicologia e entender que cada um aprende em seu tempo. Respeitar as limitações e dificuldades dos alunos, porém sem subestimar suas capacidades, tratando de tirar sempre o melhor de cada um. Enxergar os talentos e facilidades daqueles que os têm, mas sem superestimar encurtando caminhos ou pulando etapas, pois mais a frente este aluno, por mais talento que tenha, notará a falta de uma base sólida não construída. Encarar cada um como receptáculo de conhecimentos, sem importar idade, sexo, etnia, talento ou finalidade com as aulas. Todos podem aprender.

 A guitarra flamenca é então este universo vasto de possibilidades e constantes desafios, em todas as áreas, em todos os tempos. E talvez seja isso mesmo o que a torna tão viva e apaixonante. O importante não é o fim, aonde vamos chegar com ela, mas sim o caminho a ser percorrido, com todas as dificuldades que surgem, mas também com todas as recompensas com as quais somos constantemente presenteados. Sempre há algo por descobrir nesta arte provocante e pulsante, que se manifesta de forma tão sublime ao som das cordas de um violão, nas mãos de um guitarrista flamenco que possui tanto formação quanto vocação.

SEVILLANAS NO FLAMENCO

POR GABRIEL SOTO

  Quando nos inserimos no universo do flamenco, compreendemos que esta arte não se aprende por músicas, mas sim por ritmos, chamados  de palos. Assim como na dança também não se aprende apenas por coreografias, mas sim por desenvolvimento do vocabulário rítmico e corporal. Sim, flamenco é um idioma, e como tal possui seus códigos de comunicação e improvisação, tanto do baile quanto dos músicos, cada um comunicando e se expressando através de seu instrumento. E eis que ao iniciar os estudos nos deparamos com um palo considerado básico, porém fundamental para começar a adquirir conhecimentos, proveniente de Sevilla, ao sul da Espanha,  chamado Sevillanas.

 Em uma rápida busca no Google, nos deparamos com a seguinte afirmação no Wikipédia: “Sevilhanas é uma música muito leve e alegre e não faz parte do Flamenco, apesar de poder ser confundidas com este.” Pois bem, de fato é um ritmo(e não uma música, como já vimos anteriormente) que costuma ser leve e alegre, porém suas melodias e harmonias foram “aflamencadas” no decorrer dos anos, e hoje em dia é fácil contrapor esta idéia de leveza com as gravações de artistas como Camarón de la Isla, José Mercé, Potito e El Pele, para ficar em alguns exemplos. As melodias flamencas ganham um contorno de sofrimento e dor nas vozes destes cantaores, e as letras expressam o mesmo.

 Agora vem a parte mais interessante: “…não faz parte do flamenco mas pode ser confundida com este”. Ora, será porquê o violão soa como uma guitarra flamenca ao se utilizar de técnicas flamencas como razgueos, picados e polegar? Ou será pelo som das palmas e do cajón, que marcam um ritmo ternário, muito presente na musicalidade flamenca?  Ou pela interpretação quando não alegre, carregada de dramaticidade  e melismas na voz de cantores/as(dedicados à canção espanhola e coplas) e cantaores/as (dedicados exclusivamente ao flamenco)? Ou finalmente, será então devido aos “marcajes”, “braceos”, movimentos das mãos, expressão corporal, com direito a sapateado na terceira sevilhana, dentre outros, na execução da dança?

    Há de fato uma discussão, inclusive dentro do próprio ambiente flamenco, se as Sevillanas são realmente um palo flamenco. No entanto, diante de todas as evidências apresentadas, resta alguma dúvida? Pelo Método Coreológico Flamenco, criado por Cylla Alonso, é possível identificar tanto no baile quanto na música  todos os códigos que fazem parte deste universo: chamadas, arremates, respiros(este na Sevillana é estrurural), subida e cierre. E na estrutura, encontramos frases musicais de base(toque caracterísitico do violão em cada palo), “salida de cante” e letra dividida em 3 partes, sendo a última um “estribillo”(refrão). Todos os termos mencionados, fazem parte do que chamamos de códigos e estrutura dentro do universo flamenco.

   Diante de tantas evidências, é inegável que ao bailar e tocar por Sevillanas, estamos fazendo flamenco. Sem esquecer que bailar flamenco não é apenas” bailar por sevillanas”, pois além desta temos uma gama enorme de opções de palos “bailáveis” e executados musicalmente que caracterizam e identificam o flamenco como uma manifestação artística muito ampla e complexa, com um riqueza artística considerada Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco desde 2010.

    Dentre a ampla gama de estilos, a Sevilhana é provavelmente a melhor representante da expressão flamenca coletiva, onde várias pessoas podem dançar(duplas, trios, quartetos, não há limites), tocar e cantar ao mesmo tempo, pois possui estrutura fixa, com um tamanho determinado para iniciar e terminar. Além disso permite a incorporação de elementos como abanico(leque), mantón(chale) e castanholas. Acessível a todos os corpos e idades, permite a interação entre todos os participantes, além de fornecer, quando bem ensinada em sala de aula, uma base sólida, sendo uma porta de entrada ao flamenco muito rica e democrática. As Sevillanas não são portanto um estilo de dança e música solitárias, mas sim um ritmo que se apresenta como inclusivo e acessível a quem sempre desejou aprender e entender o flamenco e que ele vai muito além da mera execução de passos, notas musicais e vestimentas típicas como vemos em eventos como a “Feria de Sevilla”. Pois  a “flamencura” se desenvolve no corpo, na técnica, na expressão e no diálogo entre quem dança e quem toca. E viva as Sevillanas!

PALMAS FLAMENCAS

por Cylla Alonso

O flamenco é tão rebuscado e tão pertencente que as palmas, independente do seu papel no quadro (bailaor, guitarrista, percussionista ou cantor) fazem parte de um universo em comum e estão sempre presentes quando não se está atuando no seu devido instrumento. A grosso modo isso significa que todos os flamencos devem saber palmear.

As palmas são um elemento de acompanhamento utilizadas para dar o compasso para a guitarra, o cante ou o baile. Além do compasso, elas vão criando nuances e dando brilho àquilo que está sendo executado, podendo, inclusive, ser o único acompanhamento presente em muitos palos.

Embora palmear (fazer palmas flamencas) pareça muito fácil e simples, infelizmente não é, pois, sua execução depende, como sempre, da compreensão e domínio da linguagem fazendo com que este elemento seja muito pertencente, mas não muito democrático.

As palmas são um mundo particular dentro do universo flamenco.

O flamenco tem padrões rítmicos particulares inerentes à cada palo flamenco (estilo). Além disso, um único número flamenco dispõe de estruturas específicas cujo desconhecimento torna impossível a arte de palmear ao vivo.

As palmas simples sustentam o compasso, as frases rítmicas da palma dão “sabor” ao que está sendo cantado, tocado ou bailado e os jogos de palmas entre os palmeiros (aqueles que estão palmeando) criam vozes que se complementam e recriam na sua soma uma combinação única. A forma mais simples desta combinação são os tempos e contratempos, simples ou dobrados

Com um mínimo de dois timbres de palmas (característica de som), temos:

– Palmas sordas (palmas graves)

– Palmas vivas (palmas agudas)

Ambas trabalham muito com alterações de volume e estão submetidas à consciência dos acentos do compasso e suas variáveis de acordo com o que vai sendo pedido no diálogo flamenco. Em geral, as palmas vivas estão à serviço dos remates (fechamentos) e do sapateado dos pés em momentos diversos do baile.

Para acompanhar os palos mais dançados e tocados pelo mundo como as Bulerias, os Tangos e as Sevillanas é necessário aprender a tocar as palmas como um instrumento. Devido a esta demanda, hoje em dia estão disponíveis aulas, cursos e workshops que abordam e exploram especificamente este tema.

Uma palma bem tocada no flamenco é sinônimo de segurança. Nos shows e tablados flamencos é muito natural que os cantaores e os bailaores façam a palma nos números que se sucedem, porém, cada vez mais habitualmente, palmeros profissionais são contratados para exercer esta função durante um número ou espetáculo.

Na Casa em Si as palmas, (como elemento flamenco) está presente nas aulas, nos nossos workshops e na especialidade de musicalidade e ritmo. Siga a nossa programação e anime-se para vivenciar as palmas como instrumento.

CARLOS SAURA – O cineasta que presenteou o mundo com o flamenco

Vindo de uma família de artistas e apaixonado por fotografia desde a adolescencia, Carlos Saura é um nome muito importante e relevante no cinema espanhol. Para os flamencos e para os amantes desta arte o dia 10 de fevereiro de 2023 marca a partida do diretor, cineasta e roteirista que levou o flamenco ao mundo marcando uma geração.

Mesmo sabendo da importância do conjunto da sua obra, a sua contribuição para o flamenco é muito marcante e especial. Você já ouviu falar dele? Já viu algum dos filmes?

Dono de uma obra artística rica e repleta de estrelas flamencas, Carlos Saura nos deixa o seu amor pelo flamenco e o seu olhar para esta arte através de uma filmografia que atravessou continentes e perpetuou o flamenco.

“A dança, sobretudo o flamenco, tem algo mágico. Nenhuma dança no mundo é tão clara e evidente, principalmente nas mulheres: ela levanta as mãos e ali está, em seus dedos, o próprio céu, o esvoaçar das pombas. Da cintura para baixo é a terra”, afirmou ao jornal El País em setembro de 2020.

Na década de 80, Saura nos marca com a trilogia  flamenca: – BODAS DE SANGRE (1981), CARMEN (1983) E AMOR BRUJO (1986), nomeado ao Oscar de melhor Filme Estrangeiro e Prémio do Jurado no Festival de Cannes com Carmen.

Na década de 90 nos brinda com o filme SEVILLANAS (1991) que reflete a arte deste popular baile e suas mil e uma facetas, seguido do filme FLAMENCO (1995) que nos oferece sua perspectiva e estética ímpares trazendo  luzes, sombras e fotografia ao flamenco.

Em 2010 lança FLAMENCO FLAMENCO retornando com nuances do filme anterior para documentar a dança Flamenca e as mudanças ocorridas nesse período.

Antonio Gades, Cristina Hoyos, Camarón de la Isla, Paco de Lucia, entre outros tantos de arte indescritível se somam à sua obra (provavelmente a mais importante da nossa época) imortalizados nos filmes que geraram uma paixão do público pelo flamenco, graças à forma que Saura nos levava (ou nos trazia) até ele.

“Tive sorte. Sempre digo: fui escolhido porque fiz o que gostava de fazer, tive muita convivência social, economia suficiente para continuar vivendo e sete filhos. Não posso reclamar”, disse Saura ao El País em 2020.

Para quem desconhece estas obras ou não assistiu à todas, deixamos a lista em ordem cronológica e recomendamos que assistam os filmes e mergulhem em mais de 40 anos de história da arte flamenca com Carlos Saura.

  • 1981 – Bodas de Sangre;
  • 1983 – Carmen;
  • 1986 – El amor Brujo;
  • 1991 – Sevillanas;
  • 1995 – Flamenco;
  • 2010 – Flamenco Flamenco.

Apesar da tristeza por sua partida e sabendo que sua genialidade não irá nos surpreender mais no futuro, nossa função é divulgar sua obra e importância, hoje e no futuro, com o mais puro agradecimento dos flamencos pela sua arte.

Salve, Carlos Saura!

FLAMENCO: DESCOBRINDO SEU INSTRUMENTO INTERNO

“Cantar é essencial, tocar é secundário”.

      Frase dita por um aluno de violão, que descobriu um vasto universo musical ao começar a cantar os sons que ele produzia no instrumento. E com sons me refiro a melodia e ritmo. Ao encontrar dificuldades em executar um exercício de arpejo (quando as notas de um acorde são tocadas separadamente em combinações específicas), percebeu não só que tocar era mais fácil ao cantar as notas no tempo, como a memorização se tornava muito mais viável, ao invés de focar apenas no processo mecânico.

      Técnica é o estudo do processo físico e mecânico do movimento, incluindo conscientização, assimilação, reprodução e memorização. Ela é fundamental para que os sons que produzimos, seja no violão, cajón, palmas, cante ou na dança flamenca (incluindo sapateado e corpo) saiam limpos e precisos. Fundamental também para que não nos machuquemos ao executar de maneira incorreta, e possamos render mais com menos esforço. Mas se esta técnica vier acompanhada de musicalização, ela com certeza será mais eficiente e de fácil absorção. 

     No flamenco, o estudante de dança está muito habituado a “pegar passos” e memorizar sequências coreográficas. A coreografia acaba sendo o foco principal. O esquecimento de frases de sapateados é muito comum. E por quê isso acontece? Ao fixarmos a nossa atenção na quantidade de vezes que o passo é feito, ou apenas na mecânica que está sendo usada, nos esquecemos do principal: como deve soar. Qual o som que desejamos produzir. A verdade é que se esquecermos da mecânica, mas lembrarmos do som, e claro, soubermos como encaixar esta sonoridade no compasso, tudo dá certo no final, porque um pé fora do tempo vai destoar muito mais do que um golpe no lugar de uma planta.

  Cantar o sapateado então é vital, e não vem dissociado da mecanização do mesmo. Ao contrário, contribui e muito para uma execução precisa e memorização. Quando cantamos uma sequência de pés, nos apropriamos dela, e passamos a fazer parte da música que acompanha de fato. A apropriação e domínio rítmico vem então do ato de cantar, e não apenas de ouvir e memorizar mecânicas. Nesse processo o conhecimento adquirido de forma consciente ajuda a reconhecer esses sons e nomeá-los. Ao dar nome e sobrenome ao que fazemos, nos apropriamos por completo da linguagem. E o flamenco é uma linguagem, que quando bem falada, será bem compreendida e bem recebida em qualquer canto do mundo.

   Tercina que entra na segunda nota antes do tempo, compassos binários que dialogam com ternários e um binário de ligação no final da frase musical de base de Seguiriyas, melodias ascendentes e descendentes que indicam o caminho do cante, falsetas e bases de violão, palmas dobradas, frases de arremate…. a linguagem flamenca parte de uma base de conhecimentos, e cada etapa de aprendizado é vital para que possamos sempre seguir crescendo e não estacionar ou regredir. A musicalidade é requisito fundamental para expressarmos mais e melhor. Não se trata de mais ou menos talento, mas sim de mais ou menos conhecimentos adquiridos, mais teoria aliada à pratica, mais cantar e cantarolar.

   Então, cantarolar é preciso! Mais do que decorar letras, cantar as melodias, seja de uma falseta, de uma letra de Alegrias, de um estribillo de Fandangos de Huelva, não importa, cantarole tudo, e sempre com a palma trabalhando junto marcando o compasso. Cada passo aprendido está dentro de um contexto rítmico e melódico. Cante as divisões rítmicas, as escobillas, chamadas, arremates. Se o flamenco é uma linguagem, não basta ouvir, é preciso falar. Ouça mas também fale. E falar flamenco é cantar tudo o que fazemos. O conceito de cantar não é exclusividade do cante. É de todos. E ao contrário do que se imagina, vem antes da execução de um sapateado, de uma falseta, de um cante, de um toque do cajón ou das palmas. É cantando que nos apropriamos de tudo o que fazemos no flamenco. Fazer flamenco é ouvir, compreender e responder. Vamos responder com propriedade, vamos cantar!

Gabriel Soto

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