MULHERES NA GUITARRA FLAMENCA

Elas estão chegando

por Gabriel Soto

Quem já estudou ou leu algo sobre flamenco conhece a cartilha sempre proclamada ao falar sobre o assunto: “El arte flamenco se constituye de tres pilares: cante, baile y toque (canto, dança e toque do violão)”. Em filmes e documentários espanhóis sobre o flamenco sendo praticado desde o berço nas famílias “gitanas”(ciganas), em particular na região sul da Espanha, na Andalucía, vemos como as crianças são incentivadas desde cedo ao cante e ao baile, sem distinção de sexo ou idade. Nas praças, em volta da mesa de jantar com a família reunida, nas celebrações de casamentos e aniversários, nos bares, inclusive nas missas evangélicas de domingo, crianças, adultos e idosos pertencentes a este universo praticam esta Arte diariamente, com a mesma frequência e naturalidade com que bebemos água.

No entanto, quando se trata de quem vai tocar o violão, o que vemos é uma predominância e domínio total da figura masculina. Claramente, não vemos que as meninas sejam incentivadas ou motivadas a tocar a guitarra (violão) flamenca como são os meninos. Mas, como tudo na vida, a evolução e mudança desse panorama é inevitável, por mais que caminhe a passos muito lentos, mas sempre adiante.

Sim, o flamenco começa a respirar novos ares! De tempos em tempos isso acontece. Há 20 anos ensinando guitarra flamenca, pela primeira vez tenho 50% de alunos do sexo feminino e 50% masculino. Talvez a explicação esteja no fato de vivermos em um país onde, supostamente, há mais liberdade de expressão para as mulheres, pelo menos em comparação aos demais países latinos. Será? Na Espanha, país onde nasce esta arte, dificilmente vemos guitarristas mulheres atuando, por exemplo, em um quadro flamenco em algum tablao em Madrid. Mas por quê isso ocorre? E como melhorar a representatividade do público feminino nesta área?

Segundo o jornal “El País”, apenas um de cada dez professores de conservatórios de música flamenca é mulher, e em uma sala de 20 alunos, com sorte há uma representante do gênero feminino. Guitarristas como Antonia Jiménez, Laura González, Bettina Flater, Elena San Román y Kati Golenko, entre algumas das que atuam profissionalmente, tiveram que enfrentar en um momento de suas carreiras algum tipo de preconceito, atitude ou comentário machista, inclusive de mulheres.

Uma das formas de compreendermos esta lacuna de uma representação significativa das mulheres na guitarra flamenca, é justamente a educação e os hábitos machistas presentes na cultura espanhola e gitana. O guitarrista, no acompanhamento ao cante, funciona como um fiel escudeiro, que ampara através dos acordes e do ritmo, adornando as pausas da voz com variações e falsetas (micro composições com estrutura determinada de cada palo/estilo) e toques de grande velocidade e destreza, sobretudo ao acompanhar também ao baile. Imagine o cantaor confiando em uma mulher ao violão como sua fiel escudeira que o ampara e abrilhanta sua apresentação com seu acompanhamento firme e preciso, cantando muitas vezes letras extremamente machistas, onde se fala da mulher que o abandonou, desprezou ou traiu… é possível?

A partir do momento em que se encara a música flamenca enquanto conteúdo didático a ser ensinado como técnica, conhecimento e partir de um método, cai por terra toda e qualquer argumentação machista sobre “força” no toque, que supostamente as mulheres não teriam. Flamenco expressa força, sem dúvida, entre tantas expressões possíveis, mas se executa com técnica, e é justamente o estudo e domínio do instrumento a partir de uma técnica específica que permite uma expressão mais precisa e emocionante, independente de se quem está tocando o instrumento é um homem ou uma mulher. Ou seja, é a partir da utilização do conhecimento como ferramenta de descobertas para superar nossos próprios limites que conseguimos quebrar qualquer barreira imposta sobre homens e mulheres. A técnica é a mesma para todos.

O flamenco é um idioma a ser aprendido, e como tal, não depende de aptidões masculinas ou femininas. A partir da técnica, homens cantam mais agudos, mulheres mais graves. Homens dançam movimentos antes relacionados mais ao sexo oposto, mulheres dançam movimentos e gestos antes considerados mais masculinos. Na guitarra, nas palmas e no cajón, para finalizar, todos usamos os mesmos instrumentos: mãos e cérebro. Façamos todos a nossa parte por um mundo menos desigual, onde o que importe seja apenas as horas dedicadas à absorção desta linguagem chamada Flamenco.

DA ESTÉTICA AO MERGULHO NA LINGUAGEM FLAMENCA

Ah, esse tal de flamenco é matéria para muitas vidas e feliz daquele que escolheu se entregar à ele nessa vida.

Mesmo que a paixão aconteça pelo contato com a força, a beleza e a natureza particular do flamenco, o amor verdadeiro por ele chega quando saímos da superfície e mergulhamos cada vez mais profundamente na sua essência de troca e de possibilidades.

Para quem não o conhece muito, o flamenco reúne a dança, o canto, a guitarra, a percussão do cajón e as palmas como elementos primordiais que trabalham juntos recriando a criação cada vez que essa reunião acontece.

Começamos a aprender uma coreografia, uma música e um toque mas quando nos reunimos com os outros elementos é onde a arte flamenca realmente acontece.

Um código de baile comunica como o baile seguirá, um som a mais do sapateado altera a sequência combinada, um alongamento de cante modifica uma parte do todo (mesmo que coreografada). Um respiro pode ou não ser necessário (e bailaor e cantaor se comunicam sem palavras, ao vivo, para que ambos sigam ou respirem juntos). Um acorde diferente na guitarra pode nos pedir para bailar um pouco mais sobre a melodia. Uma subida de intensidade do corpo impele o cajón a aumentar sua intensidade. A tranquilidade do corpo pode diminuir todo o volume musical que preenchia o espaço. E entre mil possibilidades, entre uma parte e outra, caminhamos juntos para uma grande explosão de sons, movimentos e sentimentos como uma grande gargalhada conjunta ou um potente silêncio profundo numa conversa entre amigos.

Todo esse diálogo se dá sem palavras e, na maioria das vezes, sem combinação prévia. A expressão flamenca acontece no que chamamos no método coreológico flamenco de: pontos de mobilidade, que são momentos específicos onde o corpo, a voz, a harmonia e a percussão não só conversam, mas principalmente mudam o rumo do tom e o conteúdo daquela conversa naquele momento.

A conversa não é aleatória e exige dominar os recursos do seu instrumento, bem como conhecer a interação dos outros elementos. É através da clareza do compasso que nos une e do conhecimento de onde (e como) comunicar dentro dele que essas intervenções acontecem.

Mesmo sem essa consciência, o flamenco segue sendo apaixonante, visceral e de extrema beleza graças às suas características, porém, quando ficamos na superfície estética perdemos a melhor sensação que ele pode nos oferecer que é de pertencimento, integridade, entrega e principalmente, a unidade.

É muita coisa? É sim … mas vale à pena mergulhar.

O preenchimento infinito destes encontros flamencos e os momentos em que a essência dessa arte se incorpora na vida artística de um aluno são indescritíveis.

Sou muito grata àqueles que se propõe a mergulhar comigo e que, através das suas conquistas, partilham comigo momentos de felicidade e união através da arte.

Cylla Alonso

RE-CONHEÇA – DANÇA É TRABALHO

Desde muito antes do começo da pandemia, eu me perguntava se as pessoas realmente sabiam que a dança, a música, enfim, … que as artes são uma profissão. Embora soubesse que há pouca consciência sobre o setor, eu sabia que toda mobilização da área era inevitável e necessária, tornando-se fundamental com a pandemia.

Na Live “Flamenco es trabajo”, (flamenco é trabalho) que aconteceu no canal do América Flamenca no Youtube, pude acompanhar a movimentação que está acontecendo no flamenco, que se move em diferentes países buscando seu espaço próprio nas artes e na área da cultura.

As Lives do Canal do América Flamenca têm trazido fontes diversas, nos mostrando que, além da vida flamenca artística nas Américas, também existem pessoas por detrás das artes que trabalham para produzir diálogo, escuta e conscientização a partir do compartilhamento de informações.

Produzida por Alejandra Soto e Thais Maya, esta Live do América Flamenca alimentou ainda mais no meu comprometimento com o projeto coletivo (#dançaessencial) ao ouvir os relatos dos representantes das associações artísticas (neste caso voltadas ao flamenco) do Chile, Argentina e Espanha.  É cada vez mais claro para mim como os artistas têm necessidades fundamentais comuns, e como o setor, fragilizado profissionalmente desde seu berço, ficou mais invisível como profissão, apesar de todo progresso nos últimos anos e das visíveis mobilizações que ocorreram na pandemia.

A jornalista Alejandra Soto pontuou incrivelmente ao fazer uma pergunta aos entrevistados sobre como é importantíssima a ação e organização da Associação União Flamenca Espanha, como uma referência, necessidade, inspiração, ou talvez um marco, para uma nova revisão do papel dos profissionais flamencos em várias partes do mundo.

No caso do flamenco, considerando as necessidades e as características particulares que o diferenciam das outras danças, a busca por uma movimentação comum enquanto área específica de atividade profissional a ser considerada, é notória em todas as partes do mundo. Ouvindo os relatos das associações percebemos claramente como a profissão de artista tem necessidades básicas convergentes, mas que cada área de cada setor tem demandas próprias que devem ser levadas em consideração.

Flamenco é dança, mas também é música e, ao ser categorizado numa área específica (dança ou música) perde a sua essência de ser a soma destas duas áreas. Flamenco, até num solo, é dança coletiva pois interage, coexiste em cena em comunicação AO VIVO com os músicos e vai além dos teatros pela sua natureza diversificada em ambientes mais específicos, como o tablado, a cueva, uma juerga, peñas e salas de cante, que possuem propostas características para cada ambiente, mesmo pertencendo a mesma linguagem.

Faço questão de comentar que todos os relatos foram inspiradores, mas minha admiração pelo artista Arcangel ultrapassou o nível máximo. Concluo que o artista que transborda arte o faz mesmo fora de cena e sua natureza sempre encontra uma maneira de manter uma majestosa beleza, até mesmo quando humanamente exibe suas tristezas.

Foi assim que ouvi a beleza contundente das falas do cantaor flamenco Arcangel, que não escondeu a tristeza sobre os efeitos da pandemia e soube falar com maestria, principalmente sobre a necessidade da mudança humana como um atributo essencial para que as associações se criem, se mantenham, cuidem e protejam seus artistas.

Através de suas ações no Union Flamenca, Arcangel mostra que “dar a cara” por um objetivo comum é falar sobre o que atinge aqueles que não tem visibilidade para alçar a voz. É usar sua voz para que algo seja feito em benefício de toda uma classe de artistas profissionais que precisam de um coletivo que organize e estruture as demandas, a regulamentação, burocracias fiscais, contratuais e condições para que seja possível interceder com seriedade junto aos órgãos governamentais de competência.

Arcangel também falou sobre outras questões delicadas com muita sensibilidade e objetividade. Trouxe à tona a dificuldade em reunir artistas ressaltando a diferença entre a produção artística e o coletivo profissional, frisando que as associações funcionais precisam trabalhar em prol das necessidades comuns, onde os “egos” precisam ser deixados de lado para que algo possa ser feito em benefício de todos. Importantíssimo falar disso, pois os coletivos artísticos não podem começar a mudar o mundo baseando-se em como cada um sente a arte ou se expressa através dela e não crescerão sem estar focados no que é comum ao aspecto profissional de todos.

Apesar de ser reconhecido mundialmente pelo seu cante, não se esqueceu de falar sobre a invisibilidade da arte como profissão, nos lembrando que há algo estrutural na sociedade e nas leis da cultura que precisam ser abordadas e mudadas para que sejamos reconhecidos como trabalhadores dignos.

Sobre este tema, o vídeo exibido pela associação argentina de mulheres trabalhadoras flamencas da Argentina fala muito sobre esse reconhecimento.

Deixo aqui meu “reverence” à Arcangel e à todos que participaram nesta Live, especialmente à produção do América Flamenca.

Ainda que a dança esteja longe de alcançar o espaço, visibilidade e reconhecimento como profissão na sociedade, são ações e conversas como estas que possibilitarão uma revisão sobre a importância dos trabalhadores da dança para o todo o público.

Cylla Alonso

Sigam e compartilhem a hashtag #dançaessencial

Deixo aqui para vocês o link da Live:

POR QUE A DANÇA É ESSENCIAL?

Como definir as “essencialidades” do mundo?

No meio de uma pandemia, seria realmente possível considerar essencial qualquer coisa que vá além do que nos mantém vivos como: respirar, hidratar e alimentar? O equilíbrio e bem-estar físico, mental e emocional estão além das nossas necessidades básicas ou fazem parte delas?

Na história atual que estamos escrevendo (simultaneamente, mas, seguramente, não em conjunto) a Dança ficou em terceiro plano, preterida e sem, ao menos, uma menção específica nas idas e vindas das atividades consideradas nas restrições. 

No contexto da dança na pandemia, (separando a área de espetáculos nesta pauta) escolas, estúdios, aulas, professores, alunos e atividades têm obedecido os protocolos dedicados às academias de ginástica e musculação, que pouco (ou quase nada) tem a ver com o trabalho artístico, levando a dança, e tudo deste setor, à uma espécie de invisibilidade profissional e social no que se refere a sua real importância.

Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! (Friedrich Nietzsche). 

Falamos nos últimos 14 meses em um aumento considerável de crises de depressão, ganho ou perda excessiva de peso, apatia, ataques de pânico, crises de ansiedade, desmotivação … Estamos nos referindo à saúde mental? Sim. E onde entra a dança? Na saúde geral do indivíduo enquanto atividade que trabalha a melhoria do equilíbrio químico, do prazer, autocuidado, da atividade física, do pertencimento e da ressignificação das experiências atuais através da arte.

A Dança trabalha o corpo desde uma percepção também interna, ocupando-se de mover o corpo (enquanto técnica) fundamentalmente associada aos aspectos da mente e da emoção do indivíduo, liberando e transformando assim o stress emocional, mental e físico de forma completamente diferente da malhação.

Liberadas na dança, a dopamina, serotonina, endorfina são substâncias químicas produzidas pelo cérebro, essenciais para o desempenho de diversas funções físicas e psicológicas, e estão relacionadas às sensações de motivação, alegria, euforia e ao bem-estar geral.

Então a dança é essencial? Sim, porque a dança traz equilíbrio químico, físico, emocional e, principalmente, porque saúde mental não é sobre não sentir coisas ruins, é sobre não deixar que elas te dominem. A dança se faz de dentro para fora. 

Até a dança que não rebola tem descido até o chão com as demandas, tratando de se adequar as aulas online, que tem sido ministradas com inúmeras dificuldades por todos os lados. Nem todos tem equipamentos, nem todos tem boas conexões, professores não podem ministrar as aulas na sala de dança quando há fechamentos do comércio, existem conteúdos impossíveis de serem desenvolvidos na casa de muitos professores e dos alunos…

Convenhamos. A dança está dando um show de resiliência e criatividade no seu ambiente interno, cujo trabalho não tem tido alcance para ser exaltado, discutido, nem recompensado com uma possível revisão. O movimento precisa do espaço, o corpo precisa do piso apropriado, o aluno precisa do professor, o passo precisa de liberdade sem pisar no gato ou bater nos móveis, a música precisa estar sincronizada com o corpo sem os atrasos da internet, mas a dança finge que essas demandas não são empecilhos gigantes e segue dançando, porque a dança nos é necessária, porque ela nos organiza, nos equilibra, nos exercita, nos expressa e nos relembra quem somos.

Sem aglomeração e com todos os protocolos de segurança, a dança apenas constata a sua essencialidade e se entristece com sua invisibilidade em um momento em que o mundo precisa urgentemente dançar pela saúde, não pela poesia.

Se a dança não te parece essencial, observe seus amigos que seguiram dançando e os que pararam durante a pandemia. Você notará que todos sofrem os efeitos dos tempos que estamos vivendo mas também verá que o enfrentamento desta situação terá muitas diferenças de um grupo para o outro.

Mais do que nunca, além de uma atividade, a dança é um medicamento preventivo contra a tristeza e a ansiedade que baixam a imunidade e se tornam uma porta aberta para o vírus.

Vai passar. Enquanto não passa, dancem !!!

Cylla Alonso

10 DICAS DE COMO ESCOLHER SUAS AULAS DE FLAMENCO

     Estreando aqui nos artigos da Casa em Si, queria trazer um tema bem atual que tem feito parte da vida das pessoas na busca pela atividade flamenca na pandemia: como escolher as aulas de flamenco?

     Partindo de uma conversa bem bacana num dos intervalos de aula sobre as referências que nos levam a buscar o flamenco como atividade, segue a minha primeira reflexão para as 10 dicas sobre o tema, lembrando sempre que o flamenco é uma linguagem e que aprender é um processo. 

1.            NÃO PROJETE SEU DESEMPENHO FLAMENCO NA ATUAÇÃO DE BAILARINOS PROFISSIONAIS; 

É natural nos apaixonarmos por flamenco depois de ver a atuação daquele artista maravilhoso, mas cuidado para não projetar as expectativas do seu aprendizado em ver refletida no espelho a imagem e semelhança daquele artista preferido. O Flamenco é uma expressão artística e, portanto, é um trabalho para elaborar e depois exteriorizar o que acontece no nosso interno. 

2.            OPTE POR AULAS QUE TE DESAFIEM A DESCOBRIR-SE NESTA ARTE COM AUTOCONHECIMENTO;

Na autodescoberta flamenca, você vai descobrir sua própria personalidade artística durante o processo de aprendizado que, para falar a verdade, só começa a dar sinais depois do domínio das técnicas preliminares. 

3.            PESQUISE E EXPERIMENTE VÁRIAS PROPOSTAS DE AULA ATÉ TER A CERTEZA DE QUE ENCONTROU AQUILO QUE VOCÊ BUSCAVA.

Existem propostas de aula das mais variadas no Brasil de hoje: Flamenco como atividade física, para fins terapêuticos, voltado para uma coreografia, como uma linguagem, para empoderamento, enfim… vários caminhos e escolha aquele que melhor você se identificar. São muitos caminhos diferentes e possíveis. 

4.            ESCOLHA O MELHOR PERFIL DE AULA PARA VOCÊ 

Escolha a trilha que melhor se adequa à sua busca, lembrando sempre de não cair na frustração, pois é uma linguagem e, como um idioma, leva tempo e prática para ser fluente e poder criar e expressar seus próprios contextos. Não desista nas primeiras dificuldades.

5.            DÊ UMA CHANCE ÀS AULAS ONLINE. ELAS PODEM TE SURPREENDER.

Em tempos de pandemia, com vidas online muito sobrecarregadas, é natural sentir que as aulas online não farão você progredir da mesma forma que a aula presencial. Porém, isso não é verdade. O Flamenco online tem suas restrições, pois não podemos sapatear na cabeça do vizinho de baixo, mas existe um mundo novo para você conhecer. A Arte flamenca possui uma grande diversidade de estudos sobre um mesmo tema. Existe uma riqueza profunda naquilo que vai além de passos: a guitarra, a palma, o compasso, o cante…. Para bailar, temos que ter conhecimentos e diálogos com elementos que vão muito além do nosso corpo. Ressaltando novamente, existem várias propostas online muito bacanas. Pesquise, envolva-se e experimente.

6.            CONSIDERE EXPERIMENTAR AULAS INDIVIDUAIS CASO TENHA DIFICULDADE DE HORÁRIOS.

Com um cotidiano bem bagunçado e mudanças de rotina a todo momento, (seja devido à correria do dia-a-dia ou às mudanças para atender/adequar aos protocolos de segurança das autoridades) lembre-se que você pode optar por aulas individuais para tornar possível começar ou seguir com o flamenco neste momento. 

7.            PEÇA CONTEÚDOS, PERGUNTE E CONVERSE NAS PÁGINAS PROFISSIONAIS DE FLAMENCO.

Uma das vantagens do mundo virtual é que podemos interagir com os professores através das páginas profissionais, sites e redes sociais. Aproveite estas ferramentas online e peça recomendações de material de pesquisa, tire suas dúvidas e converse com pessoas que já fazem parte do flamenco nacional. 

8.            LEMBRE-SE QUE A ARTE FLAMENCA ACONTECE COM MÚSICA AO VIVO E APOSTE NA DANÇA E NA MÚSICA ELABORADAS COM APRENDIZADO CONJUNTO.

São muitos os relatos de pânico quando os músicos aparecem interagindo pela primeira vez com a coreografia. No flamenco, a música dialoga com a dança todo o tempo num universo ao vivo e único, sujeito a intervenções e mudanças que podem deixar o aluno em desespero sem uma prévia convivência e adequação. A melhor maneira de aprender pode ser conviver com a dança, a guitarra, o cante, as palmas e o cajón como elementos naturais do flamenco, já que realmente esses elementos funcionarão como um grupo que deve respirar musicalmente junto com o corpo.

9.            BUSQUE ESPAÇOS HUMANIZADOS PARA SENTIR-SE ACOLHIDO DURANTE A PANDEMIA.

Neste momento de demanda de alta produtividade, ao escolher suas aulas de flamenco, certifique-se de que há um acolhimento humanizado além do cumprimento de metas. Nos tempos atuais, faz-se necessário que nossos círculos e atividades consigam nos abrigar, garantindo a compreensão das dificuldades que se refletem no nosso desempenho. 

10.          NÃO ESPERE A PANDEMIA PASSAR. COMECE JÁ.

A vida é agora. Não espere a pandemia acabar (pois sabemos que ainda levará um tempo). Comece com a disponibilidade que tem e use as ferramentas virtuais a seu favor. Faça o seu melhor sem deixar nenhum plano ou sonho para depois.

Cylla Alonso

TÉCNICA E FLAMENCO: MITOS E FATOS

    Existe um certo ranço com a técnica no flamenco. Parece que falar de técnica, e enfatizar a importância da mesma no aprendizado é sinônimo de “tirar a espontaneidade da coisa”. No entanto, a prática do flamenco passa a acontecer com naturalidade justamente quando as técnicas já estão absorvidas mentalmente e corporalmente, quando não precisamos mais pensar na técnica no momento de bailar e tocar, e a entrega se torna possível sem a necessidade da racionalização naquele momento dos movimentos feitos, do compasso e divisões executados, da estrutura do cante, dos códigos de comunicação. É a técnica a serviço da arte, permitindo que através dessas ferramentas possamos comunicar e expressar tudo o que desejamos, sem que fique caricato, sem que pareça imitação ou mera reprodução de sons e movimentos.

    No violão, a mão direita é a que de fato vai dizer o “como” vai soar o instrumento. Acordes e escalas não soarão flamencas se a forma de expressá-las não for a adequada. E tudo interfere no som: o posicionamento do violão na perna, o ângulo da mão direita nas cordas, a ação dos dedos tanto para buscar a corda quanto para produzir o som, seja arpejando, razgueando, executando a técnica de polegar com peso e apoio na corda de baixo, fazendo um picado com a pulsação correta, e um largo etc. Tudo interfere na sonoridade, e a ausência ou deficiência dessas ferramentas se fazem notar facilmente. Inclusive a marcação do pé do guitarrista, ora marcando o tempo da música, ora marcando o acento do compasso, tem a maneira mais adequada de ser feita. É o conjunto das informações, e a presença de um professor que faça as correções devidas, que vai resultar em um aprendizado mais ou menos efetivo.

     No baile, o estudo é mais complexo ainda. Estão a educação do corpo através da consciência corporal, eixo, encaixes, giros, “braceos”, mãos, distribuição de peso, mecânica dos pés, gravidade usada a favor do movimento, semi-flexão das pernas…. Nada é livre! E a educação do ouvido, para entender o que a guitarra, a palma, o cajón e o cante estão comunicando.Tudo que se faz exige uma educação, um processo de aprendizagem dos conceitos, dos “por quês” e “como” de cada coisa, assim como de assimilação e absorção das informações. Nada acontece da noite para o dia, são semanas, meses, anos de estudo para cada item mencionado. A falta de conhecimento é o que faz o aluno se machucar, desenvolver tendinites, assim como não dialogar claramente com os músicos através dos códigos. A responsabilidade de quem ensina é tremenda, pois o professor é o responsável por transmitir as ferramentas que vão permitir que o aluno de fato conheça melhor o seu corpo e suas limitações, suas características e personalidade.

     A técnica é, portanto, a melhor forma de conhecer a si mesmo.

     A técnica é, portanto, a melhor forma de conhecer a si mesmo. Primeiro porque através dela descobrimos que somos capazes de produzir sons e executar movimentos que nem imaginávamos ser possíveis. Através dela quebramos as barreiras criadas por nós mesmos, com auto afirmações depreciativas do tipo: “tenho duas pernas esquerdas”, “sou surdo”, “sou descoordenado”, “não tenho ouvido” e um sem fim de pré-conceitos sobre si mesmo, criados no decorrer da vida. É por isso que as crianças são como esponjas e absorvem tudo rapidamente, pois não têm a personalidade ainda contaminada por tantos estigmas.

Primeiro porque através dela descobrimos que somos capazes de produzir sons e executar movimentos que nem imaginávamos ser possíveis. Através dela quebramos as barreiras criadas por nós mesmos, com auto afirmações depreciativas do tipo: “tenho duas pernas esquerdas”, “sou surdo”, “sou descoordenado”, “não tenho ouvido” e um sem fim de pré-conceitos sobre si mesmo, criados no decorrer da vida. É por isso que as crianças são como esponjas e absorvem tudo rapidamente, pois não têm a personalidade ainda contaminada por tantos estigmas.

   Não aprendemos técnica para aprender a sentir, mas sim como um meio para poder expressar de fato tudo o que sentimos, com menos limitações e mais segurança.

   A técnica existe para quebrar paradigmas, romper limitações impostas por si mesmos, ou por julgamentos externos absorvidos durante a vida. Não aprendemos técnica para aprender a sentir, mas sim como um meio para poder expressar de fato tudo o que sentimos, com menos limitações e mais segurança. Discursos como “o flamenco não é só técnica, flamenco é sentimento, é preciso esquecer a técnica para bailar/tocar”, apenas contribuem para disseminar idéias equivocadas sobre a verdadeira função de se estudar esta arte, e menospreza a ferramenta mais importante que permite que TODOS possam aprender corretamente, e não apenas quem tem o demasiadamente superestimado “talento” ou “ouvido bom”. O tal “duende” que cada um tem dentro de si, expressado sem o conhecimento, se converte em uma deturpação, deformação e desrespeito por esta arte. Uma caricatura do som, do movimento do corpo, uma reprodução sem consistência, sem se apropriar do que de fato busca expressar.

     Menosprezar a técnica no flamenco em função de fazer o aluno se “sentir feliz”, é menosprezar a todos que de fato se dedicam a seguir aprendendo, melhorando, estudando e fazendo aulas para melhorar como artista, como professor e como alunos eternos que somos todos. A técnica bem trabalhada e assimilada permite que se baile e se toque flamenco sem ter que pensar nela, mas isso não é sinônimo de esquecimento, mas sim de conhecimentos absorvidos e digeridos o suficiente para não ter que “pensar” no que se está fazendo, e sim apenas reagir aos estímulos sonoros e visuais, e desfrutar como criança! Ensinar os caminhos possíveis, a consciência do que se está fazendo, não é sinônimo de limitar o aluno à técnica, mas sim de libertá-lo de suas próprias crenças e limitações.

    Não somos espanhóis, não somos gitanos, a maioria de nós não vive desde o berço em um ambiente flamenco. Por isso mesmo, como “estrangeiros” que somos, precisamos depurar, analisar e entender o máximo possível de informações que possamos não só para fazer bem, mas também para ensinar e transmitir corretamente, sem deturpar o que já existe, e usando todo esse conhecimento a nosso favor, e de um flamenco que é possível de ser compreendido como a linguagem que é. Sem esquecer que espanhóis e gitanos também se dedicam exaustivamente aos estudos técnicos antes de subir em um palco, pois ninguém nasce sabendo. No flamenco somos todos estrangeiros, “impuros” e miscigenados, pois é uma arte que nasce da fusão e influência de diversas culturas, e segue em constante transformação.

    Técnica é o estudo mecânico do movimento, a consciência motora dos mecanismos que temos em nosso corpo, que reagem ao conjunto de estímulos sonoros e visuais.

    Técnica é o estudo mecânico do movimento, a consciência motora dos mecanismos que temos em nosso corpo, que reagem ao conjunto de estímulos sonoros e visuais. Por isso precisa ser trabalhada constantemente, para que em cena possamos apenas reagir e sentir, agir e provocar, dialogar e expressar. Flamenco é sim uma arte complexa, mas graças ao estudo da técnica, com método e critério, se torna uma arte acessível a todos, para quem canta, baila e toca.

     Democratizar o ensino é justamente tornar estes conhecimentos acessíveis a todos, independente do sexo, cor ou idade, é não priorizar apenas quem tem “mais facilidade” ou talento, mas sim a todos que de fato quiserem aprender, e permitir que encontrem no processo do aprendizado a própria felicidade, que não reside apenas no palco, no estar em cena, nos aplausos. A arte precisa da técnica para poder seguir sendo transmitida em qualquer época, assim como a técnica precisa da arte para encontrar uma razão de existência. E nós?  Nós somos os grandes beneficiados: aprender, entender e fazer. E aqui a ordem dos fatores interfere diretamente no resultado final.

Gabriel Soto

FLAMENCO E LIBERDADE – CANTO

“A voz que se expõe”

   Entre os 3 pilares do flamenco, “cante, baile e toque”, o primeiro tem um destaque, merecido, nesta “hierarquia”. Inclusive pelas eternas discussões e polêmicas, que se tornam verdadeiros paradigmas em torno a afirmações como “el cante no se aprende, se nace”. Talvez justamente por ser ainda, entre os 3 elementos, o que menos “academização” sofreu. Existem excelentes cantaores(as) ensinando sua arte, mas podemos dizer que há poucos professores, com método pedagógico e preparação na arte do ensino. Pois as profissões de artista e de professor são completamente distintas, e exigem preparações e conhecimentos únicos. No entanto, com as tecnologias disponíveis e os avanços nos estudos da arte flamenca, hoje é possível para qualquer um aprender a cantar, inclusive a distância. Dizem que é preciso ouvir muito flamenco. Mas ouvir o que, quem e como? Aprender a ouvir também se faz necessário.

     Expressar o flamenco na voz é se despir de qualquer crença limitante. Principalmente para o estrangeiro, o payo, que não é gitano, que não nasceu na Espanha e nem sequer possui qualquer ascendência espanhola. É se permitir se apropriar de uma manifestação artística que te permite expressar todas as emoções e sensações humanas, em diferentes Palos(estilos). É se despir da vergonha de expressar um lamento em um melisma “choroso”, de falar de morte sem tabus. De falar da saudade de sua terra ou de um ser amado, com um sorriso no rosto e lágrimas nos olhos. De fazer “trabalenguas”(trava línguas) com gosto e propriedade, disfrutando como uma criança que brinca de cantar e “tararear” em cena.

      É claro que dançar, tocar ou cantar flamenco são expressões da alma. Todas exigem, além de muito estudo e domínio sobre o ofício, uma entrega total e completa de si mesmo.

Mas o cante, talvez justamente por ser um canal direto e literal de conexão do interior com o exterior, represente a expressão e exposição máxima da alma.

Aquela que vem lá dos recônditos mais inacessíveis e obscuros ou iluminados de cada um. Botar para fora um sentimento através da voz, em cena, exige um autocontrole e ao mesmo tempo uma capacidade de expressão vocal ímpares. Estão, além da alma, a afinação, o domínio do compasso e das divisões rítmicas silábicas, o reconhecimento de acordes que moldam as melodias que estão sendo cantadas e o entendimento do que cada Palo pretende abordar enquanto tema.

     Flamenco é um idioma, e cantar flamenco vai muito além da língua espanhola, que já é de difícil pronúncia.

Dialogar com o bailaor(ora) é uma arte para poucos, pois é preciso conhecer profundamente os códigos de comunicação e as estruturas de baile possíveis. Saber aonde se aplicam os respiros (pausas do cante), os alongamentos dos “ayeos”, as repetições de frases, quando e onde aplicar os “estribillos, jugetillos e coletillas”. Utilizar a voz como um elemento de improvisação que se ampara completamente no compasso. Entender os códigos de chamadas e arremates da guitarra flamenca, que está ali para fornecer todo o suporte rítmico e harmônico, agregando valor às melodias do cante.

      Cantar flamenco exige entrega pois é um grito de liberdade, de liberação das emoções e do mais profundo de cada um. Todos podem cantar flamenco: bailaores(as), guitarristas e percussionistas, aliás, não só podem como devem! Não há uma obrigação de se tornar um profissional do cante. Mas ao reproduzir as melodias entendemos por exemplo as estruturas das letras. Reconhecemos os Palos. E com essa ferramenta, todos dialogam através da mesma língua: o flamenco.

      A voz do corpo, a voz do violão, a voz das palmas, a voz do cajón…. Todas se unem à voz humana, expressa em palavras, que formam frases, que ganham vida através das melodias, que servem de fio condutor para que todas essas vozes unidas ganhem sentido e juntas expressem o mesmo idioma. Dizem que cantar é difícil. Dizem que cantar flamenco é para poucos. Difícil é não dar voz ao que ouvimos, e sem cantar dar sentido à dança, ao toque do violão. Tudo que cantamos, entendemos. Se entendemos, expressamos melhor. Tudo que expressamos melhor, nos faz mais felizes. Cantar é se expor e um verdadeiro desafio. E a vida se torna bem mais emocionante com esse desafio que escolhemos abraçar. Sem julgar a si mesmo ou ao outro. A voz também faz parte de nossa identidade.

Vamos dar voz a nossas vozes.

FLAMENCO E LIBERDADE – MÚSICA

“Tocar e voar com as próprias notas”

Uma das piores sensações da pandemia é a de não poder voar. E não é voar de avião. É voar, flutuar, viajar através da música como músico, tocando ao vivo. Ser livre, não pensar nas contas que tem pra pagar, nos problemas emocionais, nas dificuldades da vida, nos dissabores. Apenas… fazer música.

Recentemente toquei em um sarau online. “Que solidão… Que solidão.” O distanciamento que a câmera impõe é imperdoável. Não há a energia das pessoas e o calor da proximidade, não há reações, apenas você com o seu instrumento atuando sozinho em uma sala repleta de espaços vazios onde antes haveria gente. Ainda assim, um privilégio ter tido a oportunidade de voltar a tocar, mas definitivamente, por mais que a tecnologia tenha vindo para nos brindar com tantas oportunidades de ver tantos artistas e fazer tantas aulas a distância….não é assim que se brinca de fazer e de comer arte.

É como tentar comer uma lasanha pela video, tomar um vinho sem poder sentir o gosto e o perfume…. A música é um estímulo sonoro, e pode ser ouvida com fones, em qualquer aparelho, mas nada substitui a nota musical que entra diretamente pelo ouvido, ativa as sinapses, vibra na pele e ressoa na alma. E o músico flamenco sabe bem disso. As cordas da guitarra flamenca vibram mais do que a de outros estilos.

A técnica aplicada em conjunto com um manancial de emoções que implica em fazer flamenco, faz com que essas cordas vibrem em excesso, e produzam toda a intensidade do toque do guitarrista.

A sensibilidade aparece nas composições de falsetas, na construção de melodías que entregam a personalidade do seu criador, deixando-o nú perante o público, mostrando o que carrega dentro, traduzido em notas musicais.

Tocar as falsetas e músicas dos grandes mestres do violão flamenco produz a sensação incrível de se sentir apto a realizar aquele ofício, se apropriando momentaneamente da composição alheia para poder expressar sua musicalidade e genialidade. É como se tornar partícipe daquela composição. Mas nada se compara a dar forma através de sons a algo que saiu de dentro de você, e então passa a fazer parte do público presente de forma tão única quanto efêmera.

Existe uma ordem lógica para isso acontecer. Primeiro é preciso que o ser humano escolha o violão como um instrumento de expressão. É um corpo estranho que requer muito estudo para conseguir se expressar com coerência. Para isso estão os mestres. Para auxiliar nesse processo. Não é papel do mestre alimentar o ego de seu aluno, assim como não é também seu papel destruir sua auto estima com críticas desproporcionais. O mestre ensina e corrige. Apresenta as ferramentas para a construção do conhecimento. Ponto.

Ao encontrar um bom mestre, ainda é preciso aprender a ser um bom aluno. E após muita prática, o violão se torna o veículo de expressão, se torna a voz que fala através do ritmo, das melodias e harmonias.

Nesse ponto você começa a entender a relação antropofágica e libertária que se estabelece com o instrumento. Você precisa dele para se expressar livremente, e ele precisa de você para ter algum propósito de existir. E vice-versa. Nasce uma relação simbiótica. Você o toca, o som produzido penetra a madeira pela boca do violão, que a expele após ter digerido aquele acorde, aquelas notas que foram tocadas de maneira única e irrepetível pelos seus dedos, que atenderam ao comando de seu cérebro, que traduziu as sensações da sua alma, que precisava do violão e de estudo para falar daquela maneira, e penetrar nos ouvidos e nos sentidos dos ouvintes naquele instante, de uma forma única e irrepetível, e que nunca mais voltará a acontecer. Nem para quem toca, nem para quem ouve.

Cada toque do violão flamenco é um recomeço, uma oportunidade de fazer diferente, de colocar em prática seus estudos, mas sobretudo, de expressar de maneira única o que se leva dentro. De expressar e dar sentido ao cante, servindo de cama harmônica e de compasso às letras e melismas, dando sentido rítmico aos arremates e respiros, inspirando e expirando junto ao(a) cantaor(ora). Dialogando através da força e energia exacerbada, assim como da delicadeza e sutilezas que acompanham o sentido da voz que soa e que anseia por essa conversa com as cordas do violão.

Ao baile, a guitarra flamenca tambem se submete. Se adequa. Se molda. Se curva. Se solidifica. Se torna um só junto ao bailaor(ora) quando bem executada. Jamais se impõe, pois seu protagonismo consiste justamente em converter em sons e linhas melódicas e rítmicas os movimentos que se apresentam diante de seus olhos e ouvidos.

Braços, giros, marcações, passeios e sapateados, tudo sendo ofertado como em um ritual, para o músico simplesmente…. musicar. Não cabe ao guitarrista as decisões e o rumo do baile. Cabe a quem está a frente, utilizando o corpo todo como instrumento, decidir o que vai acontecer ou não. Cabe ao guitarrista entender o que está sendo dito sem palavras, e transformar tudo o que está sendo comunicado em sonoridades únicas que ele escolheu para cada um daqueles momentos.

Existe maior liberdade do que adquirir todas essas responsabilidades por escolha própria, e decidir como expressá-las?

Moldar movimentos e sons dos pés, moldar letras e “quejíos” das vozes flamencas é o mais puro ato de liberdade.

Dentre os elementos que compõe o flamenco, cante, baile e toque, este último é o mais submisso. E também o que possui a maior gama de opções de formas de acompanhar, e de poder decidir como aquela voz ou aquele baile vai soar naquele momento. O guitarrista flamenco faz a liga entre o baile e o cante, e vice versa, oferece a inspiração musical a ambos, reage a cada estímulo por mais sutil que seja. O violão soa então como um organismo vivo, tal qual o filme “O Violino Vermelho”.

Mas tocar violão flamenco é um ato de liberdade sobretudo por um motivo: porque te permite expressar suas emoções, é um veículo de expressão, de libertação através da arte. O som do violão flamenco é um abraço sonoro. E sua verdadeira função é essa. Abraçar e tocar seres humanos através da música. Por um mundo com muito mais abraços sonoros.

FLAMENCO E LIBERDADE – DANÇA

Dança flamenca – O corpo liberto

Recentemente dei um depoimento sobre o que o flamenco representa em minha vida. Falo desde o lugar de um guitarrista flamenco, mas que trabalha dando forma musical aos movimentos de homens e mulheres que se expressam com o corpo. É muito interessante notar que para a maioria, fazer flamenco está íntimamente asociado a um ato de libertação, à possibilidade de você ser você mesmo, seja tocando, dançando ou cantando.

Na dança, poder expressar o seu corpo, as suas linhas, suas formas, suas marcas, seus atributos e “defeitos”, seus excessos e faltas, sua força e sua delicadeza, seus medos e suas coragens, seus estigmas, suas inseguranças e orgulhos, sua timidez e sua atitude, o seu registro corporal adquirido na infância, na juventude, na vida adulta, no excesso de condicionamento de outras danças ou justamente na completa ausência do mesmo… É de fato libertador.

O flamenco possibilita sim esse empoderamento, palavra já utilizada em excesso e vulgarmente, e que aqui na verdade cabe como luva feita sob medida. Através da dança flamenca, aliada a um(a) maestro(a) com amplos conhecimentos, vivência, método e pedagogia, é possível entrar em contato com o seu corpo de uma nova forma, em um novo contexto, e em cada palo(estilo) poder expressar com sentido tão diferentes sensações, significados e emoções.

É possível usar os registros já adquiridos, consciente e inconscientemente, a favor de novas descobertas sobre si mesmo. Desde a postura até a forma em que as mãos se movem, os dedos, ombros e cada parte de seus braços, ao construir cada movimento vão desenhando, conforme aprendem, figuras no ar, riscos, traços que deixam rastros, feixes de luzes e sombras…

… Eva la Yerbabuena bailando e Paco Jarana tocando a guitarra flamenca, por exemplo, transmitem tudo isso com maestria, unindo sons e movimentos, percussão dos pés e execução das cordas do violão com um sentido claro e preciso do significado da palavra musicalidade, aliada, é claro, à sensibilidade e ao domínio sobre o COMO desejam transmitir.

Existe uma mística em torno ao COMO. Não se trata de memorizar quando se deve sorrir, ou fazer cara de triste ou braba. Não se trata da vestimenta e indumentária ou de criar climas através de luzes e incensos. Não se trata apenas de botar a alma pra fora, e sofrer intensamente em cena. Nos espelhamos nos grandes maestros justamente porque eles encontraram o equilíbrio e a maneira de unir tanto o sentimento, quanto a técnica e o conhecimento em um mesmo espaço, chamado expressão corporal. Estereotipar o aluno condicionando o aprendizado ao “sentir”, é deixar de lado justamente o que mais possibilita o tal do empoderamento sobre seu próprio corpo, que consiste em entender, compreender e assimilar as informações sobre o que você está mexendo nele, como isso acontece, por quê, como isso aparece quando você se olha no espelho, e além disso, como e quando você encaixa tudo isso no compasso, no palo, na letra, na falseta e ainda concilia com a percussão dos pés. Por isso mesmo, dançar flamenco é um desafio e um aprendizado para toda a vida, não se aprende em meses, mas é acessível a todos através de método e estudo.

Por esse motivo sempre questionei a hábito de se colocar profissionais que estão começando a dar aula, para dar aulas aos inciantes, sendo que é justamente nesse princípio que o aluno mais precisa das informações, das ferramentas corretas para não se machucar, não adquirir vícios que atrapalhem seu desenvolvimento e não desenvolver tendinites, sobretudo nos joelhos pela, má postura e técnica incorreta para sapatear. Se este professor iniciante tem o assessoramento de um profissional experiente, menos mal. Se não, o aluno correrá sérios riscos por estar justamente aprendendo com um professor também iniciante. Mas essa é uma outra discussão.

Se empoderar através do conhecimento, é justamente o que te dá condições de algum dia de fato não ter que se preocupar com a técnica acima do que se busca expressar enquanto sentimento.

Dançar flamenco é de fato liberador, libertador e “flamencalmente” falando, um ato libertino enquanto “conduta de pessoa que se entrega imoderadamente aos estudos flamencos e sua prática excessiva”, pois se torna de fato um vício!

Viver esta arte é libertador pois com ela você literalmente explora todo o seu corpo em movimentos nunca antes feitos ou pensados, você modifica sua postura pois encaixa seu corpo em seu eixo e o desencaixa sempre que desejar, com consciência. Você “bate” os pés no chão, “bate” as palmas e produz sons que dialogam com os músicos, você “grita” palavras enquanto dança e/ou palmeia através dos jaleos (palavras de incentivo e interação entre os artistas). E tudo isso poderia ser sem aspas. Pois no flamenco você faz de fato tudo isso, e ainda desfruta como uma criança.

Que o flamenco siga cumprindo sua função de libertar e empoderar homens e mulheres de qualquer idade, peso, cor ou credo, através da consciência e do conhecimento, tanto artisticamente, quanto de si próprio, e assim possamos superar nossos próprios limites e sobretudo nossas crenças limitantes. O flamenco liberta corpos, mas também pode libertar mentes. Que assim seja.

Gabriel Soto

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