Flamenco é mais que a “cena”. É processo!

Ainda permeada pelos eventos do Projeto Tablas da Casa em Si e pelas trocas imensamente generosas com alunos, professores e artistas, trago este artigo pontuando o que está entre aquilo que as pessoas veem e aquilo que acredito que os flamencos poderiam viver e experimentar.

No artigo anterior, falo um pouco da arte flamenca como uma arte possível para todos que desejam aprendê-la como uma linguagem específica e quase como uma continuação, me embrenharei um pouco mais nos pensamentos sobre a utilização do flamenco “em si” para quem aprende e para quem já sabe, insistindo (como sempre) no viés na comunicação.

Talvez, algumas danças tenham em vista o condicionamento físico, outras a mera diversão ou o sonho da apresentação para uma plateia, mas o flamenco, em sua natureza, vai muito além disso, pois é sobre a vida, sobre seu momento, sobre essência, sobre o que você sente em determinado momento.

Se tratamos o flamenco como uma linguagem estamos falando de certos ambientes onde a troca ao vivo acontece, mas também é natural visualizá-la na “cena montada” dos ambientes mais teatrais, onde o diálogo passa a ter boa parte das suas falas marcadas (o que chamamos de convenções) deixando a linguagem impressa principalmente na própria montagem.

Para além da “Cena”, do estético e do coreográfico, flamenco como arte é principalmente uma forma de se comunicar, de perceber e ser percebido pelo outro, com mais ou menos profundidade, de acordo com o conhecimento da linguagem.

Fora do cenário e dos ambientes de apresentação, o flamenco existe. O antes e o depois das aulas, a juerga, o happy hour, os encontros… são nesses momentos onde a interação flamenca se torna mais apaixonante e desejada:

“- Canta um pouquinho! “

“- Faz a palma para eu te mostrar uma coisa! “

“– Ouve esta falseta! “

“– Olha este remate! “

“– Já ouviu esta letra? “

Tudo isso se trata de um acesso interno pautado no momento presente e no diálogo com o outro(s).

Mas, o que sabemos sobre a nossa própria voz? Até que ponto somos capazes de manter nossa voz estando com nosso canal de recepção aberto à voz do outro? É possível repensar sobre a nossa capacidade de escuta e de diálogo?

É difícil não parecer fora da realidade ao falar de uma arte com comunicação, ferramentas de ação, escuta e respeito ao processo contínuo, num mundo contemporâneo que se estabelece com milhares de problemáticas da individualidade na relação com o outro, com o marketing vicioso que oferece “aprenda o que deseja em 5 dias” ou “aprenda estrutura de baile sem convivência entre a dança e a música”, sem falar da felicidade digital efêmera que relaciona a exibição como prova de vida e sucesso.

Neste imediatismo, quem entra numa aula esperando saber se frustra e não aprende, pois invisibiliza o papel do professor, além de não estar no seu papel de aluno. Por outro lado, quem entra numa aula e sabe tudo, se encontra num lugar tão confortável que talvez não se questione porque estuda, aonde pouco ou nada, tem a lhe acrescentar.

Desde o momento onde nos tornamos conscientes do “não saber” se estabelece um caminho para o saber. Antes disso é impossível.

Flamenco é pura linguagem e, portanto, é comunicação! Assim sendo, o flamenco está no cotidiano do encontro e somente pode fazer parte da nossa realidade se compreendermos como linguagem.

Para chegar neste flamenco que descrevo é necessário entender primeiramente que o flamenco vai “muito além da cena”, da quantidade de coreografias aprendidas. Fazer flamenco não é apenas apresenta-lo, é viver esta arte na vida, em cada momento em que ela te serve como um instrumento para a sua expressão.

Desenvolver-se no flamenco deve produzir uma descoberta interna, uma evolução intensa e, mais do que isso, exercita o respeito pelo PROCESSO DE APRENDIZADO E INTERAÇÃO CONSTANTES, num mundo onde tudo tende a se tornar apenas um produto final pronto, rápido e descartável.

Quem compreende e respeita o processo, todo dia sai diferente, mais instrumentados, mais dono do seu saber, mais inquieto, aberto aos encontros e mais certo de que há um mundo interno por desbravar e um mundo externo por conhecer. Nestes casos, fazer flamenco pode chegar a ser um refinamento diário pessoal e social através da arte.

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