FLAMENCO E LIBERDADE – DANÇA

Flamenco - O corpo liberto

Dança flamenca – O corpo liberto

Recentemente dei um depoimento sobre o que o flamenco representa em minha vida. Falo desde o lugar de um guitarrista flamenco, mas que trabalha dando forma musical aos movimentos de homens e mulheres que se expressam com o corpo. É muito interessante notar que para a maioria, fazer flamenco está íntimamente asociado a um ato de libertação, à possibilidade de você ser você mesmo, seja tocando, dançando ou cantando.

Na dança, poder expressar o seu corpo, as suas linhas, suas formas, suas marcas, seus atributos e “defeitos”, seus excessos e faltas, sua força e sua delicadeza, seus medos e suas coragens, seus estigmas, suas inseguranças e orgulhos, sua timidez e sua atitude, o seu registro corporal adquirido na infância, na juventude, na vida adulta, no excesso de condicionamento de outras danças ou justamente na completa ausência do mesmo… É de fato libertador.

O flamenco possibilita sim esse empoderamento, palavra já utilizada em excesso e vulgarmente, e que aqui na verdade cabe como luva feita sob medida. Através da dança flamenca, aliada a um(a) maestro(a) com amplos conhecimentos, vivência, método e pedagogia, é possível entrar em contato com o seu corpo de uma nova forma, em um novo contexto, e em cada palo(estilo) poder expressar com sentido tão diferentes sensações, significados e emoções.

É possível usar os registros já adquiridos, consciente e inconscientemente, a favor de novas descobertas sobre si mesmo. Desde a postura até a forma em que as mãos se movem, os dedos, ombros e cada parte de seus braços, ao construir cada movimento vão desenhando, conforme aprendem, figuras no ar, riscos, traços que deixam rastros, feixes de luzes e sombras…

… Eva la Yerbabuena bailando e Paco Jarana tocando a guitarra flamenca, por exemplo, transmitem tudo isso com maestria, unindo sons e movimentos, percussão dos pés e execução das cordas do violão com um sentido claro e preciso do significado da palavra musicalidade, aliada, é claro, à sensibilidade e ao domínio sobre o COMO desejam transmitir.

Existe uma mística em torno ao COMO. Não se trata de memorizar quando se deve sorrir, ou fazer cara de triste ou braba. Não se trata da vestimenta e indumentária ou de criar climas através de luzes e incensos. Não se trata apenas de botar a alma pra fora, e sofrer intensamente em cena. Nos espelhamos nos grandes maestros justamente porque eles encontraram o equilíbrio e a maneira de unir tanto o sentimento, quanto a técnica e o conhecimento em um mesmo espaço, chamado expressão corporal. Estereotipar o aluno condicionando o aprendizado ao “sentir”, é deixar de lado justamente o que mais possibilita o tal do empoderamento sobre seu próprio corpo, que consiste em entender, compreender e assimilar as informações sobre o que você está mexendo nele, como isso acontece, por quê, como isso aparece quando você se olha no espelho, e além disso, como e quando você encaixa tudo isso no compasso, no palo, na letra, na falseta e ainda concilia com a percussão dos pés. Por isso mesmo, dançar flamenco é um desafio e um aprendizado para toda a vida, não se aprende em meses, mas é acessível a todos através de método e estudo.

Por esse motivo sempre questionei a hábito de se colocar profissionais que estão começando a dar aula, para dar aulas aos inciantes, sendo que é justamente nesse princípio que o aluno mais precisa das informações, das ferramentas corretas para não se machucar, não adquirir vícios que atrapalhem seu desenvolvimento e não desenvolver tendinites, sobretudo nos joelhos pela, má postura e técnica incorreta para sapatear. Se este professor iniciante tem o assessoramento de um profissional experiente, menos mal. Se não, o aluno correrá sérios riscos por estar justamente aprendendo com um professor também iniciante. Mas essa é uma outra discussão.

Se empoderar através do conhecimento, é justamente o que te dá condições de algum dia de fato não ter que se preocupar com a técnica acima do que se busca expressar enquanto sentimento.

Dançar flamenco é de fato liberador, libertador e “flamencalmente” falando, um ato libertino enquanto “conduta de pessoa que se entrega imoderadamente aos estudos flamencos e sua prática excessiva”, pois se torna de fato um vício!

Viver esta arte é libertador pois com ela você literalmente explora todo o seu corpo em movimentos nunca antes feitos ou pensados, você modifica sua postura pois encaixa seu corpo em seu eixo e o desencaixa sempre que desejar, com consciência. Você “bate” os pés no chão, “bate” as palmas e produz sons que dialogam com os músicos, você “grita” palavras enquanto dança e/ou palmeia através dos jaleos (palavras de incentivo e interação entre os artistas). E tudo isso poderia ser sem aspas. Pois no flamenco você faz de fato tudo isso, e ainda desfruta como uma criança.

Que o flamenco siga cumprindo sua função de libertar e empoderar homens e mulheres de qualquer idade, peso, cor ou credo, através da consciência e do conhecimento, tanto artisticamente, quanto de si próprio, e assim possamos superar nossos próprios limites e sobretudo nossas crenças limitantes. O flamenco liberta corpos, mas também pode libertar mentes. Que assim seja.

Gabriel Soto

6 comentários em “FLAMENCO E LIBERDADE – DANÇA”

  1. Quanta sensibilidade e verdade neste texto! Além de prazeroso, o Flamenco nos liberta dos nossos medos e das nossas inseguranças. Bailar, palmear, cantar, tocar… Se entregar!
    Não se trata apenas de colocar uma bela saia, uma flor nos cabelos e um belo par de sapatos: Se trata de aprender para se entregar e se superar!

    Obrigada pelo seu olhar critico Gabriel “y que sigamos disfrutando del arte!”

  2. Grande Maestro Gabriel!!! Realmente as artes têm esse poder de nos libertar, de nos redimir, mas particularmente o Flamenco, com sua origem que atravessou séculos, acredito que nos trás cura do nosso corpo emocional e espiritual. Quando dizes que nos liberta, sim: nos liberta de dores profundas, de amores desajeitados, de seres fragmentados e incompletos, enfim, das coisas da vida. É isso que penso. Obrigado por escrever!

  3. Gabriel, prazer!!! Muito sensível e pertinente este texto. Quando nos colocamos num espaço de imanência, tudo que nos atravessa pode ser potência de sim e de não. O Flamenco é enigmático, pois suas raízes estão nas veias de povos aguerridos , de resistência e em poder de ser quem são. Quando entendemos isso, conseguimos ter a liberdade de reconhecer em nós o Flamenco como corpo, como expressão e como identidade.
    Grata!!!

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