FLAMENCO DE HOJE

Quem vê flamenco hoje não imagina o quanto este gênero mudou plasticamente e sonoramente para se consolidar com o formato atual. O baile flamenco necessita dos músicos para se consolidar como arte flamenca. Podemos dizer que houve uma espécie de revolução no acompanhamento ao baile e na concepção coreográfica deste nos últimos 30 anos. Paco de Lucia, maior expoente da guitarra flamenca e deste gênero musical de todos os tempos, já revolucionava com seu sexteto nos anos 80 e 90, com arranjos elaborados e repletos de convenções, arremates e frases rítmicas virtuosísticas, em conjunto com seu irmão Ramón de Algeciras na segunda guitarra, Rubem Dantas na percussão, Jorge Pardo na flauta, Carles Benavent no baixo e Pepe de Lucía, também irmão, no cante. Ao ouvir “Solo quiero caminhar”, para citar um exemplo, fica claro o quanto influenciaria outros músicos e bailaores/as(coreógrafos/as) nas composições e arranjos feitos para espetáculos de dança flamenca.

No baile, Antonio Canales, Eva La Yerbabuena, Sara Baras, Israel Galván, Joaquin Grilo (que também fez parte do sexteto de Paco) e Joaquin Cortés, entre outros, fizeram parte desta modernização na dança, tanto através de incorporações de outras linguagens corporais, teatrais e cênicas, quanto da música como sendo mais um elemento protagonista em cena. Convencionar com os músicos seus bailes se tornaria rotina, elevando o nível artístico das apresentações, através de muitos ensaios que propiciaram que a música estivesse sempre completamente atrelada ao movimento do corpo e percussão dos pés. Diferentemente do conceito de tablado, onde não há tempo para esta elaboração e a comunicação se dá diretamente através das estruturas de baile e códigos, nas montagens de espetáculos teatrais é possível combinar e marcar com os músicos cada detalhe, tornando mais complexo e rico tanto o baile quanto a música. Yerbabuena e suas montagens com seu marido e diretor musical, Paco Jarana, são uma fonte riquíssima da evolução flamenca no diálogo entre baile e música. Galván deslumbra com seu vanguardismo e ousadia.

 Joaquín Cortés, por exemplo, trouxe para o Brasil em 1.997 o espetáculo Pasión Gitana, descrito pelo caderno de cultura “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, como “um show de dança flamenca que mistura técnicas do balé clássico, do jazz e da dança moderna”. Era considerado o bailarino espanhol de maior projeção internacional. Ainda segundo o próprio jornal naquele ano: “atualmente, diversos grupos de artistas espanhóis se inspiram em Cortés para produzir espetáculos de dança cigana fora dos padrões convencionais.” Era chamado de “flamenco fusion”, mas é interessante notar que  o artigo fala em dança cigana, atrelando o gênero ainda a estereótipos e folclore, sendo que na realidade é uma arte em constante evolução e mudanças de concepção, haja visto como se fazia antes e como se faz hoje. Cortés conseguiu de fato fazer uma espetacularização do flamenco, com uma produção autêntica de shows de rock, figurino de Giorgio Armani, uma companhia homogeneizada de 13 bailarinas com figuras esbeltas para uma determinada finalidade plástica em cena, e uma banda de 17 músicos, que exerciam suas funções com absoluta precisão cirúrgica nas convenções, quase tocando como se fosse uma trilha já pronta ´para ser executada. No entanto, mesmo com toda essa produção, é necessário ressaltar que quem arrancava mais aplausos e levantava o público era o seu tio, Cristóbal Reyes, que dançava um solo tradicional, por assim dizer.

Cada artista citado mereceria um artigo novo, e tem seu papel fundamental nesta nova concepção que surgia de se fazer flamenco. Mas o quê os unia além da necessidade de inovar e buscar seu próprio flamenco? A formação. Todos tiveram a formação “clássica” flamenca, passando pelas técnicas de pés e de corpo, dominando-as por completo antes de se embrenharem pela inovação através tanto de outras linguagens corporais quanto musicais. Todos bailaram muitos anos em “tablaos”. Todos podem ser vistos em vídeos mais antigos onde bailam com a forma tradicional de colocação corporal, executando de forma primorosa em limpeza e velocidade, fraseados rítmicos muito menos complexos do que fariam depois, mas que serviria posteriormente de referência para sapateados muito mais ricos e elaborados musicalmente. A comprovação da importância desta base sólida de técnica e conhecimentos de estruturas de baile e música, assim como seus códigos de comunicação, está justamente na transformação pela qual passaram, e que só poderia ocorrer em etapas. Não é possível, portanto, fazer o moderno sem conhecer e se aprofundar na tradição. Uma é consequência da evolução da outra, que só ocorre porque há além de artistas com suas inquietações, estes mesmos que outrora foram estudantes e alunos dedicados, e não deslumbrados. Portanto, seguimos como estudantes sempre, pois não há limites na busca de nossa própria identidade artística, que será tão mais rica quanto mais completa for.

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