A GUITARRA FLAMENCA E SUAS FACETAS

Quando falamos de guitarra flamenca, a primeira referência musical que nos vem a cabeça é Paco de Lucia, nome artístico de Francisco Gustavo Sánchez Gomes, nascido em 1.947 em Algeciras, sul da Espanha, em Andalucía, berço do flamenco. Falecido em 2014, deixou extenso legado à música. Graças a sua projeção internacional, de talento reconhecido desde os 11 anos de idade, Paco de Lucia elevou o instrumento chamado no Brasil de violão, a um patamar de altíssimo nível, influenciando o mundo inteiro, provocando a proliferação e projeção de artistas de altíssimo nível e alta performance. Depois de Paco, os violonistas flamencos, chamados de guitarristas flamencos na Espanha, nunca mais seriam vistos como músicos comuns, mas sim como extraordinários, devido a alta complexidade de execução e especialização que esta arte requer. O que poucos sabem ao iniciar seus estudos, é que dentro deste Universo existem três especializações possíveis, conhecidos como: guitarra concierto, guitarra para cante e guitarra para baile. Além, é claro, da especialização no ensino da mesma.

 O guitarrista de concierto é aquele que se dedica exclusivamente a sua carreira como solista. Para isso, precisa dedicar horas e horas de estudo diário tanto para o aperfeiçoamento e manutenção de sua técnica, quanto para a composição própria de suas músicas e produção de discos. Muitas vezes pode participar de concursos de guitarra flamenca, disputando prêmios, assim como realizar seus próprios shows, que podem ser acompanhados de outros músicos ou não. Com certeza é o trabalho mais solitário entre as três categorias, pois exige que o músico passe um tempo considerável em companhia apenas de sua guitarra. As técnicas específicas deste estilo possuem nome próprio em espanhol: razgueos, alzapuas, técnica de pulgar, tremolos, picados duros e picados al aire(punteo), devem ser executadas com limpeza, destreza, velocidade e precisão. Paco, que foi um maestro e gênio nesta área, se queixava que tocar o violão era muito difícil, mas ao mesmo tempo sua maior paixão. A agilidade com o instrumento e a capacidade do controle emocional e psicológico, que comprovam o domínio sobre o mesmo, aliados à criatividade, musicalidade e capacidade expressiva do artista, vão ser fundamentais para que este se destaque entre tantos outros que se dedicam ao mesmo ofício.

Já na guitarra para cante, os principais atributos serão outros. Acompanhar ao cante, no flamenco, significa tocar para o/a cantor/a, chamado de cantaor ou cantaora. Existem “salas de cante” na Espanha onde é possível sentar, tomar “uma copa”(uma bebida) e assistir a uma apresentação onde o guitarrista presente acompanha tanto a profissionais quanto amadores nesta arte. Para tanto, é necessário um profundo conhecimento dos estilos de cante, chamados de palos, assim como a capacidade de tocar em diversos tons, pois cada cantaor/ora terá sua preferência de tonalidade, assim como cada palo possui uma harmonização(quando colocamos os acordes na melodia cantada) específica, com regras muito rígidas e marcantes. Na maioria das vezes o guitarrista fará uso de um artefato chamado na Espanha de cejilla(no Brasil de capotraste), que se prende em uma das casas do braço do violão a fim de se adequar ao tom de quem canta. Em outros casos, o músico fará uma transposição de acordes, o que exige mais conhecimentos musicais. Os “toques” para cante podem variar muito em andamento, e exigem uma destreza do guitarrista para saber exatamente quando, como e onde deve tanto mudar de acordes, quanto subir ou baixar a velocidade da música, assim como saber quando arrematar(finalizar) corretamente a fim de não “atravessar” quem canta. Em resumo, o guitarrista tem como objetivo estabelecer uma diálogo coerente e rico com o cante, assim como ponderado, pois o destaque nessa arte se dá sempre a quem canta.

 Em uma apresentação de dança flamenca, é fundamental que tenhamos os 3 elementos que compõe esta manifestação artística: “cante, baile y toque”. Canto, dança e violão. A guitarra para baile vem a ser então uma síntese deste ofício, já que em diversos momentos o guitarrista tem a oportunidade de mostrar suas micro-composições através de falsetas(parte instrumental do baile, segundo o Método Coreológico Cylla Alonso), sua destreza e conhecimento dos palos acompanhando ao cante, e seu domínio rítmico da linguagem ao dialogar com o baile(a dança). Neste caso, o guitarrista precisa tanto estar com as devidas técnicas de “toque” em dia, quanto ter a capacidade de “ler” o que o bailaor ou bailaora estão comunicando através do corpo, assim como ser capaz de ouvir ao cante e acompanhar com os devidos acordes e o devido compasso. Deve conhecer os códigos de baile(chamadas, arremates , respiros, cierres) e as estruturas de baile possíveis para cada palo. Deve compreender as frases rítmicas dos pés, assim como saber trabalhar com estas frases em justaposição ou contraposição.  Mas deve acima de tudo, além de todo este conhecimento, ter a sensibilidade de atuar como mais um integrante da banda, e que tem como principal função fornecer um suporte sólido, porém maleável, a todos que estão atuando, servindo de referência a quem dança, que é quem realmente comanda a banda como um maestro, a quem canta e a quem faz as palmas e/ou toca o cajón. Esta sensibilidade, aliada ao conhecimento de seu ofício,  farão toda a diferença no final, para que se comprove a capacidade com que o músico acompanha e interpreta cada elemento deste quadro.

 E por fim, mas não menos importante, está o ofício de quem ensina esta arte. Ser um guitarrista habilidoso não torna ninguém um professor competente. È preciso método, visão, capacidade de empatia, muita psicologia e entender que cada um aprende em seu tempo. Respeitar as limitações e dificuldades dos alunos, porém sem subestimar suas capacidades, tratando de tirar sempre o melhor de cada um. Enxergar os talentos e facilidades daqueles que os têm, mas sem superestimar encurtando caminhos ou pulando etapas, pois mais a frente este aluno, por mais talento que tenha, notará a falta de uma base sólida não construída. Encarar cada um como receptáculo de conhecimentos, sem importar idade, sexo, etnia, talento ou finalidade com as aulas. Todos podem aprender.

 A guitarra flamenca é então este universo vasto de possibilidades e constantes desafios, em todas as áreas, em todos os tempos. E talvez seja isso mesmo o que a torna tão viva e apaixonante. O importante não é o fim, aonde vamos chegar com ela, mas sim o caminho a ser percorrido, com todas as dificuldades que surgem, mas também com todas as recompensas com as quais somos constantemente presenteados. Sempre há algo por descobrir nesta arte provocante e pulsante, que se manifesta de forma tão sublime ao som das cordas de um violão, nas mãos de um guitarrista flamenco que possui tanto formação quanto vocação.

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