“Cantar é essencial, tocar é secundário”.
Frase dita por um aluno de violão, que descobriu um vasto universo musical ao começar a cantar os sons que ele produzia no instrumento. E com sons me refiro a melodia e ritmo. Ao encontrar dificuldades em executar um exercício de arpejo (quando as notas de um acorde são tocadas separadamente em combinações específicas), percebeu não só que tocar era mais fácil ao cantar as notas no tempo, como a memorização se tornava muito mais viável, ao invés de focar apenas no processo mecânico.
Técnica é o estudo do processo físico e mecânico do movimento, incluindo conscientização, assimilação, reprodução e memorização. Ela é fundamental para que os sons que produzimos, seja no violão, cajón, palmas, cante ou na dança flamenca (incluindo sapateado e corpo) saiam limpos e precisos. Fundamental também para que não nos machuquemos ao executar de maneira incorreta, e possamos render mais com menos esforço. Mas se esta técnica vier acompanhada de musicalização, ela com certeza será mais eficiente e de fácil absorção.
No flamenco, o estudante de dança está muito habituado a “pegar passos” e memorizar sequências coreográficas. A coreografia acaba sendo o foco principal. O esquecimento de frases de sapateados é muito comum. E por quê isso acontece? Ao fixarmos a nossa atenção na quantidade de vezes que o passo é feito, ou apenas na mecânica que está sendo usada, nos esquecemos do principal: como deve soar. Qual o som que desejamos produzir. A verdade é que se esquecermos da mecânica, mas lembrarmos do som, e claro, soubermos como encaixar esta sonoridade no compasso, tudo dá certo no final, porque um pé fora do tempo vai destoar muito mais do que um golpe no lugar de uma planta.
Cantar o sapateado então é vital, e não vem dissociado da mecanização do mesmo. Ao contrário, contribui e muito para uma execução precisa e memorização. Quando cantamos uma sequência de pés, nos apropriamos dela, e passamos a fazer parte da música que acompanha de fato. A apropriação e domínio rítmico vem então do ato de cantar, e não apenas de ouvir e memorizar mecânicas. Nesse processo o conhecimento adquirido de forma consciente ajuda a reconhecer esses sons e nomeá-los. Ao dar nome e sobrenome ao que fazemos, nos apropriamos por completo da linguagem. E o flamenco é uma linguagem, que quando bem falada, será bem compreendida e bem recebida em qualquer canto do mundo.
Tercina que entra na segunda nota antes do tempo, compassos binários que dialogam com ternários e um binário de ligação no final da frase musical de base de Seguiriyas, melodias ascendentes e descendentes que indicam o caminho do cante, falsetas e bases de violão, palmas dobradas, frases de arremate…. a linguagem flamenca parte de uma base de conhecimentos, e cada etapa de aprendizado é vital para que possamos sempre seguir crescendo e não estacionar ou regredir. A musicalidade é requisito fundamental para expressarmos mais e melhor. Não se trata de mais ou menos talento, mas sim de mais ou menos conhecimentos adquiridos, mais teoria aliada à pratica, mais cantar e cantarolar.
Então, cantarolar é preciso! Mais do que decorar letras, cantar as melodias, seja de uma falseta, de uma letra de Alegrias, de um estribillo de Fandangos de Huelva, não importa, cantarole tudo, e sempre com a palma trabalhando junto marcando o compasso. Cada passo aprendido está dentro de um contexto rítmico e melódico. Cante as divisões rítmicas, as escobillas, chamadas, arremates. Se o flamenco é uma linguagem, não basta ouvir, é preciso falar. Ouça mas também fale. E falar flamenco é cantar tudo o que fazemos. O conceito de cantar não é exclusividade do cante. É de todos. E ao contrário do que se imagina, vem antes da execução de um sapateado, de uma falseta, de um cante, de um toque do cajón ou das palmas. É cantando que nos apropriamos de tudo o que fazemos no flamenco. Fazer flamenco é ouvir, compreender e responder. Vamos responder com propriedade, vamos cantar!
Gabriel Soto