FLAMENCO E LIBERDADE – MÚSICA

“Tocar e voar com as próprias notas”

Uma das piores sensações da pandemia é a de não poder voar. E não é voar de avião. É voar, flutuar, viajar através da música como músico, tocando ao vivo. Ser livre, não pensar nas contas que tem pra pagar, nos problemas emocionais, nas dificuldades da vida, nos dissabores. Apenas… fazer música.

Recentemente toquei em um sarau online. “Que solidão… Que solidão.” O distanciamento que a câmera impõe é imperdoável. Não há a energia das pessoas e o calor da proximidade, não há reações, apenas você com o seu instrumento atuando sozinho em uma sala repleta de espaços vazios onde antes haveria gente. Ainda assim, um privilégio ter tido a oportunidade de voltar a tocar, mas definitivamente, por mais que a tecnologia tenha vindo para nos brindar com tantas oportunidades de ver tantos artistas e fazer tantas aulas a distância….não é assim que se brinca de fazer e de comer arte.

É como tentar comer uma lasanha pela video, tomar um vinho sem poder sentir o gosto e o perfume…. A música é um estímulo sonoro, e pode ser ouvida com fones, em qualquer aparelho, mas nada substitui a nota musical que entra diretamente pelo ouvido, ativa as sinapses, vibra na pele e ressoa na alma. E o músico flamenco sabe bem disso. As cordas da guitarra flamenca vibram mais do que a de outros estilos.

A técnica aplicada em conjunto com um manancial de emoções que implica em fazer flamenco, faz com que essas cordas vibrem em excesso, e produzam toda a intensidade do toque do guitarrista.

A sensibilidade aparece nas composições de falsetas, na construção de melodías que entregam a personalidade do seu criador, deixando-o nú perante o público, mostrando o que carrega dentro, traduzido em notas musicais.

Tocar as falsetas e músicas dos grandes mestres do violão flamenco produz a sensação incrível de se sentir apto a realizar aquele ofício, se apropriando momentaneamente da composição alheia para poder expressar sua musicalidade e genialidade. É como se tornar partícipe daquela composição. Mas nada se compara a dar forma através de sons a algo que saiu de dentro de você, e então passa a fazer parte do público presente de forma tão única quanto efêmera.

Existe uma ordem lógica para isso acontecer. Primeiro é preciso que o ser humano escolha o violão como um instrumento de expressão. É um corpo estranho que requer muito estudo para conseguir se expressar com coerência. Para isso estão os mestres. Para auxiliar nesse processo. Não é papel do mestre alimentar o ego de seu aluno, assim como não é também seu papel destruir sua auto estima com críticas desproporcionais. O mestre ensina e corrige. Apresenta as ferramentas para a construção do conhecimento. Ponto.

Ao encontrar um bom mestre, ainda é preciso aprender a ser um bom aluno. E após muita prática, o violão se torna o veículo de expressão, se torna a voz que fala através do ritmo, das melodias e harmonias.

Nesse ponto você começa a entender a relação antropofágica e libertária que se estabelece com o instrumento. Você precisa dele para se expressar livremente, e ele precisa de você para ter algum propósito de existir. E vice-versa. Nasce uma relação simbiótica. Você o toca, o som produzido penetra a madeira pela boca do violão, que a expele após ter digerido aquele acorde, aquelas notas que foram tocadas de maneira única e irrepetível pelos seus dedos, que atenderam ao comando de seu cérebro, que traduziu as sensações da sua alma, que precisava do violão e de estudo para falar daquela maneira, e penetrar nos ouvidos e nos sentidos dos ouvintes naquele instante, de uma forma única e irrepetível, e que nunca mais voltará a acontecer. Nem para quem toca, nem para quem ouve.

Cada toque do violão flamenco é um recomeço, uma oportunidade de fazer diferente, de colocar em prática seus estudos, mas sobretudo, de expressar de maneira única o que se leva dentro. De expressar e dar sentido ao cante, servindo de cama harmônica e de compasso às letras e melismas, dando sentido rítmico aos arremates e respiros, inspirando e expirando junto ao(a) cantaor(ora). Dialogando através da força e energia exacerbada, assim como da delicadeza e sutilezas que acompanham o sentido da voz que soa e que anseia por essa conversa com as cordas do violão.

Ao baile, a guitarra flamenca tambem se submete. Se adequa. Se molda. Se curva. Se solidifica. Se torna um só junto ao bailaor(ora) quando bem executada. Jamais se impõe, pois seu protagonismo consiste justamente em converter em sons e linhas melódicas e rítmicas os movimentos que se apresentam diante de seus olhos e ouvidos.

Braços, giros, marcações, passeios e sapateados, tudo sendo ofertado como em um ritual, para o músico simplesmente…. musicar. Não cabe ao guitarrista as decisões e o rumo do baile. Cabe a quem está a frente, utilizando o corpo todo como instrumento, decidir o que vai acontecer ou não. Cabe ao guitarrista entender o que está sendo dito sem palavras, e transformar tudo o que está sendo comunicado em sonoridades únicas que ele escolheu para cada um daqueles momentos.

Existe maior liberdade do que adquirir todas essas responsabilidades por escolha própria, e decidir como expressá-las?

Moldar movimentos e sons dos pés, moldar letras e “quejíos” das vozes flamencas é o mais puro ato de liberdade.

Dentre os elementos que compõe o flamenco, cante, baile e toque, este último é o mais submisso. E também o que possui a maior gama de opções de formas de acompanhar, e de poder decidir como aquela voz ou aquele baile vai soar naquele momento. O guitarrista flamenco faz a liga entre o baile e o cante, e vice versa, oferece a inspiração musical a ambos, reage a cada estímulo por mais sutil que seja. O violão soa então como um organismo vivo, tal qual o filme “O Violino Vermelho”.

Mas tocar violão flamenco é um ato de liberdade sobretudo por um motivo: porque te permite expressar suas emoções, é um veículo de expressão, de libertação através da arte. O som do violão flamenco é um abraço sonoro. E sua verdadeira função é essa. Abraçar e tocar seres humanos através da música. Por um mundo com muito mais abraços sonoros.

FLAMENCO E LIBERDADE – DANÇA

Dança flamenca – O corpo liberto

Recentemente dei um depoimento sobre o que o flamenco representa em minha vida. Falo desde o lugar de um guitarrista flamenco, mas que trabalha dando forma musical aos movimentos de homens e mulheres que se expressam com o corpo. É muito interessante notar que para a maioria, fazer flamenco está íntimamente asociado a um ato de libertação, à possibilidade de você ser você mesmo, seja tocando, dançando ou cantando.

Na dança, poder expressar o seu corpo, as suas linhas, suas formas, suas marcas, seus atributos e “defeitos”, seus excessos e faltas, sua força e sua delicadeza, seus medos e suas coragens, seus estigmas, suas inseguranças e orgulhos, sua timidez e sua atitude, o seu registro corporal adquirido na infância, na juventude, na vida adulta, no excesso de condicionamento de outras danças ou justamente na completa ausência do mesmo… É de fato libertador.

O flamenco possibilita sim esse empoderamento, palavra já utilizada em excesso e vulgarmente, e que aqui na verdade cabe como luva feita sob medida. Através da dança flamenca, aliada a um(a) maestro(a) com amplos conhecimentos, vivência, método e pedagogia, é possível entrar em contato com o seu corpo de uma nova forma, em um novo contexto, e em cada palo(estilo) poder expressar com sentido tão diferentes sensações, significados e emoções.

É possível usar os registros já adquiridos, consciente e inconscientemente, a favor de novas descobertas sobre si mesmo. Desde a postura até a forma em que as mãos se movem, os dedos, ombros e cada parte de seus braços, ao construir cada movimento vão desenhando, conforme aprendem, figuras no ar, riscos, traços que deixam rastros, feixes de luzes e sombras…

… Eva la Yerbabuena bailando e Paco Jarana tocando a guitarra flamenca, por exemplo, transmitem tudo isso com maestria, unindo sons e movimentos, percussão dos pés e execução das cordas do violão com um sentido claro e preciso do significado da palavra musicalidade, aliada, é claro, à sensibilidade e ao domínio sobre o COMO desejam transmitir.

Existe uma mística em torno ao COMO. Não se trata de memorizar quando se deve sorrir, ou fazer cara de triste ou braba. Não se trata da vestimenta e indumentária ou de criar climas através de luzes e incensos. Não se trata apenas de botar a alma pra fora, e sofrer intensamente em cena. Nos espelhamos nos grandes maestros justamente porque eles encontraram o equilíbrio e a maneira de unir tanto o sentimento, quanto a técnica e o conhecimento em um mesmo espaço, chamado expressão corporal. Estereotipar o aluno condicionando o aprendizado ao “sentir”, é deixar de lado justamente o que mais possibilita o tal do empoderamento sobre seu próprio corpo, que consiste em entender, compreender e assimilar as informações sobre o que você está mexendo nele, como isso acontece, por quê, como isso aparece quando você se olha no espelho, e além disso, como e quando você encaixa tudo isso no compasso, no palo, na letra, na falseta e ainda concilia com a percussão dos pés. Por isso mesmo, dançar flamenco é um desafio e um aprendizado para toda a vida, não se aprende em meses, mas é acessível a todos através de método e estudo.

Por esse motivo sempre questionei a hábito de se colocar profissionais que estão começando a dar aula, para dar aulas aos inciantes, sendo que é justamente nesse princípio que o aluno mais precisa das informações, das ferramentas corretas para não se machucar, não adquirir vícios que atrapalhem seu desenvolvimento e não desenvolver tendinites, sobretudo nos joelhos pela, má postura e técnica incorreta para sapatear. Se este professor iniciante tem o assessoramento de um profissional experiente, menos mal. Se não, o aluno correrá sérios riscos por estar justamente aprendendo com um professor também iniciante. Mas essa é uma outra discussão.

Se empoderar através do conhecimento, é justamente o que te dá condições de algum dia de fato não ter que se preocupar com a técnica acima do que se busca expressar enquanto sentimento.

Dançar flamenco é de fato liberador, libertador e “flamencalmente” falando, um ato libertino enquanto “conduta de pessoa que se entrega imoderadamente aos estudos flamencos e sua prática excessiva”, pois se torna de fato um vício!

Viver esta arte é libertador pois com ela você literalmente explora todo o seu corpo em movimentos nunca antes feitos ou pensados, você modifica sua postura pois encaixa seu corpo em seu eixo e o desencaixa sempre que desejar, com consciência. Você “bate” os pés no chão, “bate” as palmas e produz sons que dialogam com os músicos, você “grita” palavras enquanto dança e/ou palmeia através dos jaleos (palavras de incentivo e interação entre os artistas). E tudo isso poderia ser sem aspas. Pois no flamenco você faz de fato tudo isso, e ainda desfruta como uma criança.

Que o flamenco siga cumprindo sua função de libertar e empoderar homens e mulheres de qualquer idade, peso, cor ou credo, através da consciência e do conhecimento, tanto artisticamente, quanto de si próprio, e assim possamos superar nossos próprios limites e sobretudo nossas crenças limitantes. O flamenco liberta corpos, mas também pode libertar mentes. Que assim seja.

Gabriel Soto

Show Buttons
Hide Buttons