“A voz que se expõe”
Entre os 3 pilares do flamenco, “cante, baile e toque”, o primeiro tem um destaque, merecido, nesta “hierarquia”. Inclusive pelas eternas discussões e polêmicas, que se tornam verdadeiros paradigmas em torno a afirmações como “el cante no se aprende, se nace”. Talvez justamente por ser ainda, entre os 3 elementos, o que menos “academização” sofreu. Existem excelentes cantaores(as) ensinando sua arte, mas podemos dizer que há poucos professores, com método pedagógico e preparação na arte do ensino. Pois as profissões de artista e de professor são completamente distintas, e exigem preparações e conhecimentos únicos. No entanto, com as tecnologias disponíveis e os avanços nos estudos da arte flamenca, hoje é possível para qualquer um aprender a cantar, inclusive a distância. Dizem que é preciso ouvir muito flamenco. Mas ouvir o que, quem e como? Aprender a ouvir também se faz necessário.
Expressar o flamenco na voz é se despir de qualquer crença limitante. Principalmente para o estrangeiro, o payo, que não é gitano, que não nasceu na Espanha e nem sequer possui qualquer ascendência espanhola. É se permitir se apropriar de uma manifestação artística que te permite expressar todas as emoções e sensações humanas, em diferentes Palos(estilos). É se despir da vergonha de expressar um lamento em um melisma “choroso”, de falar de morte sem tabus. De falar da saudade de sua terra ou de um ser amado, com um sorriso no rosto e lágrimas nos olhos. De fazer “trabalenguas”(trava línguas) com gosto e propriedade, disfrutando como uma criança que brinca de cantar e “tararear” em cena.
É claro que dançar, tocar ou cantar flamenco são expressões da alma. Todas exigem, além de muito estudo e domínio sobre o ofício, uma entrega total e completa de si mesmo.
Mas o cante, talvez justamente por ser um canal direto e literal de conexão do interior com o exterior, represente a expressão e exposição máxima da alma.
Aquela que vem lá dos recônditos mais inacessíveis e obscuros ou iluminados de cada um. Botar para fora um sentimento através da voz, em cena, exige um autocontrole e ao mesmo tempo uma capacidade de expressão vocal ímpares. Estão, além da alma, a afinação, o domínio do compasso e das divisões rítmicas silábicas, o reconhecimento de acordes que moldam as melodias que estão sendo cantadas e o entendimento do que cada Palo pretende abordar enquanto tema.
Flamenco é um idioma, e cantar flamenco vai muito além da língua espanhola, que já é de difícil pronúncia.
Dialogar com o bailaor(ora) é uma arte para poucos, pois é preciso conhecer profundamente os códigos de comunicação e as estruturas de baile possíveis. Saber aonde se aplicam os respiros (pausas do cante), os alongamentos dos “ayeos”, as repetições de frases, quando e onde aplicar os “estribillos, jugetillos e coletillas”. Utilizar a voz como um elemento de improvisação que se ampara completamente no compasso. Entender os códigos de chamadas e arremates da guitarra flamenca, que está ali para fornecer todo o suporte rítmico e harmônico, agregando valor às melodias do cante.
Cantar flamenco exige entrega pois é um grito de liberdade, de liberação das emoções e do mais profundo de cada um. Todos podem cantar flamenco: bailaores(as), guitarristas e percussionistas, aliás, não só podem como devem! Não há uma obrigação de se tornar um profissional do cante. Mas ao reproduzir as melodias entendemos por exemplo as estruturas das letras. Reconhecemos os Palos. E com essa ferramenta, todos dialogam através da mesma língua: o flamenco.
A voz do corpo, a voz do violão, a voz das palmas, a voz do cajón…. Todas se unem à voz humana, expressa em palavras, que formam frases, que ganham vida através das melodias, que servem de fio condutor para que todas essas vozes unidas ganhem sentido e juntas expressem o mesmo idioma. Dizem que cantar é difícil. Dizem que cantar flamenco é para poucos. Difícil é não dar voz ao que ouvimos, e sem cantar dar sentido à dança, ao toque do violão. Tudo que cantamos, entendemos. Se entendemos, expressamos melhor. Tudo que expressamos melhor, nos faz mais felizes. Cantar é se expor e um verdadeiro desafio. E a vida se torna bem mais emocionante com esse desafio que escolhemos abraçar. Sem julgar a si mesmo ou ao outro. A voz também faz parte de nossa identidade.
Vamos dar voz a nossas vozes.
Olé! Adorei o artigo, parabéns, Gabriel! Concordo contigo: o cante representa a expressão e a exposição máxima da alma.
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Escuto flamenco, me emociono, tenho vontade de cantar, procurei algo e encontrei aqui, gostei muito do artigo, essa é de verdade minha introdução ao flamenco, minha herança genética vem do sul da Espanha, sinto que está em minha alma, pois gosto e me emociono com o canto e a dança!