MULHERES NA GUITARRA FLAMENCA

Elas estão chegando

por Gabriel Soto

Quem já estudou ou leu algo sobre flamenco conhece a cartilha sempre proclamada ao falar sobre o assunto: “El arte flamenco se constituye de tres pilares: cante, baile y toque (canto, dança e toque do violão)”. Em filmes e documentários espanhóis sobre o flamenco sendo praticado desde o berço nas famílias “gitanas”(ciganas), em particular na região sul da Espanha, na Andalucía, vemos como as crianças são incentivadas desde cedo ao cante e ao baile, sem distinção de sexo ou idade. Nas praças, em volta da mesa de jantar com a família reunida, nas celebrações de casamentos e aniversários, nos bares, inclusive nas missas evangélicas de domingo, crianças, adultos e idosos pertencentes a este universo praticam esta Arte diariamente, com a mesma frequência e naturalidade com que bebemos água.

No entanto, quando se trata de quem vai tocar o violão, o que vemos é uma predominância e domínio total da figura masculina. Claramente, não vemos que as meninas sejam incentivadas ou motivadas a tocar a guitarra (violão) flamenca como são os meninos. Mas, como tudo na vida, a evolução e mudança desse panorama é inevitável, por mais que caminhe a passos muito lentos, mas sempre adiante.

Sim, o flamenco começa a respirar novos ares! De tempos em tempos isso acontece. Há 20 anos ensinando guitarra flamenca, pela primeira vez tenho 50% de alunos do sexo feminino e 50% masculino. Talvez a explicação esteja no fato de vivermos em um país onde, supostamente, há mais liberdade de expressão para as mulheres, pelo menos em comparação aos demais países latinos. Será? Na Espanha, país onde nasce esta arte, dificilmente vemos guitarristas mulheres atuando, por exemplo, em um quadro flamenco em algum tablao em Madrid. Mas por quê isso ocorre? E como melhorar a representatividade do público feminino nesta área?

Segundo o jornal “El País”, apenas um de cada dez professores de conservatórios de música flamenca é mulher, e em uma sala de 20 alunos, com sorte há uma representante do gênero feminino. Guitarristas como Antonia Jiménez, Laura González, Bettina Flater, Elena San Román y Kati Golenko, entre algumas das que atuam profissionalmente, tiveram que enfrentar en um momento de suas carreiras algum tipo de preconceito, atitude ou comentário machista, inclusive de mulheres.

Uma das formas de compreendermos esta lacuna de uma representação significativa das mulheres na guitarra flamenca, é justamente a educação e os hábitos machistas presentes na cultura espanhola e gitana. O guitarrista, no acompanhamento ao cante, funciona como um fiel escudeiro, que ampara através dos acordes e do ritmo, adornando as pausas da voz com variações e falsetas (micro composições com estrutura determinada de cada palo/estilo) e toques de grande velocidade e destreza, sobretudo ao acompanhar também ao baile. Imagine o cantaor confiando em uma mulher ao violão como sua fiel escudeira que o ampara e abrilhanta sua apresentação com seu acompanhamento firme e preciso, cantando muitas vezes letras extremamente machistas, onde se fala da mulher que o abandonou, desprezou ou traiu… é possível?

A partir do momento em que se encara a música flamenca enquanto conteúdo didático a ser ensinado como técnica, conhecimento e partir de um método, cai por terra toda e qualquer argumentação machista sobre “força” no toque, que supostamente as mulheres não teriam. Flamenco expressa força, sem dúvida, entre tantas expressões possíveis, mas se executa com técnica, e é justamente o estudo e domínio do instrumento a partir de uma técnica específica que permite uma expressão mais precisa e emocionante, independente de se quem está tocando o instrumento é um homem ou uma mulher. Ou seja, é a partir da utilização do conhecimento como ferramenta de descobertas para superar nossos próprios limites que conseguimos quebrar qualquer barreira imposta sobre homens e mulheres. A técnica é a mesma para todos.

O flamenco é um idioma a ser aprendido, e como tal, não depende de aptidões masculinas ou femininas. A partir da técnica, homens cantam mais agudos, mulheres mais graves. Homens dançam movimentos antes relacionados mais ao sexo oposto, mulheres dançam movimentos e gestos antes considerados mais masculinos. Na guitarra, nas palmas e no cajón, para finalizar, todos usamos os mesmos instrumentos: mãos e cérebro. Façamos todos a nossa parte por um mundo menos desigual, onde o que importe seja apenas as horas dedicadas à absorção desta linguagem chamada Flamenco.

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