Existe um certo ranço com a técnica no flamenco. Parece que falar de técnica, e enfatizar a importância da mesma no aprendizado é sinônimo de “tirar a espontaneidade da coisa”. No entanto, a prática do flamenco passa a acontecer com naturalidade justamente quando as técnicas já estão absorvidas mentalmente e corporalmente, quando não precisamos mais pensar na técnica no momento de bailar e tocar, e a entrega se torna possível sem a necessidade da racionalização naquele momento dos movimentos feitos, do compasso e divisões executados, da estrutura do cante, dos códigos de comunicação. É a técnica a serviço da arte, permitindo que através dessas ferramentas possamos comunicar e expressar tudo o que desejamos, sem que fique caricato, sem que pareça imitação ou mera reprodução de sons e movimentos.
No violão, a mão direita é a que de fato vai dizer o “como” vai soar o instrumento. Acordes e escalas não soarão flamencas se a forma de expressá-las não for a adequada. E tudo interfere no som: o posicionamento do violão na perna, o ângulo da mão direita nas cordas, a ação dos dedos tanto para buscar a corda quanto para produzir o som, seja arpejando, razgueando, executando a técnica de polegar com peso e apoio na corda de baixo, fazendo um picado com a pulsação correta, e um largo etc. Tudo interfere na sonoridade, e a ausência ou deficiência dessas ferramentas se fazem notar facilmente. Inclusive a marcação do pé do guitarrista, ora marcando o tempo da música, ora marcando o acento do compasso, tem a maneira mais adequada de ser feita. É o conjunto das informações, e a presença de um professor que faça as correções devidas, que vai resultar em um aprendizado mais ou menos efetivo.
No baile, o estudo é mais complexo ainda. Estão a educação do corpo através da consciência corporal, eixo, encaixes, giros, “braceos”, mãos, distribuição de peso, mecânica dos pés, gravidade usada a favor do movimento, semi-flexão das pernas…. Nada é livre! E a educação do ouvido, para entender o que a guitarra, a palma, o cajón e o cante estão comunicando.Tudo que se faz exige uma educação, um processo de aprendizagem dos conceitos, dos “por quês” e “como” de cada coisa, assim como de assimilação e absorção das informações. Nada acontece da noite para o dia, são semanas, meses, anos de estudo para cada item mencionado. A falta de conhecimento é o que faz o aluno se machucar, desenvolver tendinites, assim como não dialogar claramente com os músicos através dos códigos. A responsabilidade de quem ensina é tremenda, pois o professor é o responsável por transmitir as ferramentas que vão permitir que o aluno de fato conheça melhor o seu corpo e suas limitações, suas características e personalidade.
A técnica é, portanto, a melhor forma de conhecer a si mesmo.
A técnica é, portanto, a melhor forma de conhecer a si mesmo. Primeiro porque através dela descobrimos que somos capazes de produzir sons e executar movimentos que nem imaginávamos ser possíveis. Através dela quebramos as barreiras criadas por nós mesmos, com auto afirmações depreciativas do tipo: “tenho duas pernas esquerdas”, “sou surdo”, “sou descoordenado”, “não tenho ouvido” e um sem fim de pré-conceitos sobre si mesmo, criados no decorrer da vida. É por isso que as crianças são como esponjas e absorvem tudo rapidamente, pois não têm a personalidade ainda contaminada por tantos estigmas.
Primeiro porque através dela descobrimos que somos capazes de produzir sons e executar movimentos que nem imaginávamos ser possíveis. Através dela quebramos as barreiras criadas por nós mesmos, com auto afirmações depreciativas do tipo: “tenho duas pernas esquerdas”, “sou surdo”, “sou descoordenado”, “não tenho ouvido” e um sem fim de pré-conceitos sobre si mesmo, criados no decorrer da vida. É por isso que as crianças são como esponjas e absorvem tudo rapidamente, pois não têm a personalidade ainda contaminada por tantos estigmas.
Não aprendemos técnica para aprender a sentir, mas sim como um meio para poder expressar de fato tudo o que sentimos, com menos limitações e mais segurança.
A técnica existe para quebrar paradigmas, romper limitações impostas por si mesmos, ou por julgamentos externos absorvidos durante a vida. Não aprendemos técnica para aprender a sentir, mas sim como um meio para poder expressar de fato tudo o que sentimos, com menos limitações e mais segurança. Discursos como “o flamenco não é só técnica, flamenco é sentimento, é preciso esquecer a técnica para bailar/tocar”, apenas contribuem para disseminar idéias equivocadas sobre a verdadeira função de se estudar esta arte, e menospreza a ferramenta mais importante que permite que TODOS possam aprender corretamente, e não apenas quem tem o demasiadamente superestimado “talento” ou “ouvido bom”. O tal “duende” que cada um tem dentro de si, expressado sem o conhecimento, se converte em uma deturpação, deformação e desrespeito por esta arte. Uma caricatura do som, do movimento do corpo, uma reprodução sem consistência, sem se apropriar do que de fato busca expressar.
Menosprezar a técnica no flamenco em função de fazer o aluno se “sentir feliz”, é menosprezar a todos que de fato se dedicam a seguir aprendendo, melhorando, estudando e fazendo aulas para melhorar como artista, como professor e como alunos eternos que somos todos. A técnica bem trabalhada e assimilada permite que se baile e se toque flamenco sem ter que pensar nela, mas isso não é sinônimo de esquecimento, mas sim de conhecimentos absorvidos e digeridos o suficiente para não ter que “pensar” no que se está fazendo, e sim apenas reagir aos estímulos sonoros e visuais, e desfrutar como criança! Ensinar os caminhos possíveis, a consciência do que se está fazendo, não é sinônimo de limitar o aluno à técnica, mas sim de libertá-lo de suas próprias crenças e limitações.
Não somos espanhóis, não somos gitanos, a maioria de nós não vive desde o berço em um ambiente flamenco. Por isso mesmo, como “estrangeiros” que somos, precisamos depurar, analisar e entender o máximo possível de informações que possamos não só para fazer bem, mas também para ensinar e transmitir corretamente, sem deturpar o que já existe, e usando todo esse conhecimento a nosso favor, e de um flamenco que é possível de ser compreendido como a linguagem que é. Sem esquecer que espanhóis e gitanos também se dedicam exaustivamente aos estudos técnicos antes de subir em um palco, pois ninguém nasce sabendo. No flamenco somos todos estrangeiros, “impuros” e miscigenados, pois é uma arte que nasce da fusão e influência de diversas culturas, e segue em constante transformação.
Técnica é o estudo mecânico do movimento, a consciência motora dos mecanismos que temos em nosso corpo, que reagem ao conjunto de estímulos sonoros e visuais.
Técnica é o estudo mecânico do movimento, a consciência motora dos mecanismos que temos em nosso corpo, que reagem ao conjunto de estímulos sonoros e visuais. Por isso precisa ser trabalhada constantemente, para que em cena possamos apenas reagir e sentir, agir e provocar, dialogar e expressar. Flamenco é sim uma arte complexa, mas graças ao estudo da técnica, com método e critério, se torna uma arte acessível a todos, para quem canta, baila e toca.
Democratizar o ensino é justamente tornar estes conhecimentos acessíveis a todos, independente do sexo, cor ou idade, é não priorizar apenas quem tem “mais facilidade” ou talento, mas sim a todos que de fato quiserem aprender, e permitir que encontrem no processo do aprendizado a própria felicidade, que não reside apenas no palco, no estar em cena, nos aplausos. A arte precisa da técnica para poder seguir sendo transmitida em qualquer época, assim como a técnica precisa da arte para encontrar uma razão de existência. E nós? Nós somos os grandes beneficiados: aprender, entender e fazer. E aqui a ordem dos fatores interfere diretamente no resultado final.
Gabriel Soto